Diário de um Príncipe Inventado - Capítulo 5

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Nódoa - ação ou ocorrência considerada desonrosa e que prejudica a reputação de uma pessoa; mácula, estigma, labéu.

Quando Alice sugeriu que eu a acompanhasse até o lago depois da aula me neguei a ir. Tentei inventar desculpas para não ter de ir com ela, mas ela acabou insistindo tanto que acabei cedendo um pouco da minha companhia antes mesmo de chegarmos ao ginásio do colégio.
Nossas aulas de educação física eram sempre a mesma coisa, o professor Mid’Stone dava toda sua atenção para os garotos do time enquanto o restante tinha que ficar caminhando em volta do campo de Lacrosse. Eu e Alice não dávamos esse prazer a ele, ficávamos sentados observando o novo namoradinho dela de longe. Até me perguntava se ele sabia sobre esse relacionamento, mas Alice me deu garantias – fotos, muitas fotos – de que não era mentira.
“Não acredito que tudo aquilo cabe ali”. Disse Alice com um sorriso malicioso no rosto enquanto babava no balançar do volume do short de seu namoradinho.
“Você sabe que eu não sou gay?”. Fiz uma pausa enquanto ela parava de olhar o garoto correr para encarar meus olhos, “Não vou ficar comentando sobre isso, não mesmo”.
“Você já foi melhor, Patel, já foi. Sério, não sei como você se suporta diariamente”.
“Quando canso, durmo”. Disse com ironia.
Alice tinha uma certa revolta pessoal quanto a minha sexualidade, ela realmente pensava que eu era gay, tenho certeza de que ela não iria conseguir me imaginar agora, estar casado e ser pai de dois filhos enquanto administro uma editora não é fácil, e também não seria para Alice acreditar se a visse novamente para lhe contar sobre isso.
“Vou ver o Cris hoje à noite”. Disse ela com um sorriso enorme no rosto.
“Use camisinha”, disparei e ela tirou o sorriso revirando os olhos e voltando a olhar o time procurando pela sua nova e breve paixão.
Meu coração acelerou, o ar não entrava mais com tanta facilidade nos meus pulmões quando Sabrina e as outras garotas líderes de torcida entraram no campo.
Tentei me controlar, ainda não tinha falado nada para Alice sobre o convite, e certamente não falaria tão cedo. Minha amiga, sim, minha amiga provavelmente cairia em risos sem fim quando soubesse.
Então não podia contar para ela, não ali.
Mas quando vi Sabrina caminhando em direção a arquibancada senti a pele do meu rosto queimar como nunca havia sentido. Como se tivesse despejado combustivo em meu próprio rosto e ateado fogo.
Ela subiu os três degraus e parou ao meu lado me encarando enquanto suas outras amigas a observava de longe.
“Oi, James”, disse Sabrina me olhando nos olhos da forma mais meiga possível, ela olhou para Alice e sorriu educadamente, “Alice”.
“Em que podemos te ajudar?”. Perguntou Alice disparando na minha frente. Ainda estava tentando montar uma frase completa na minha mente.
Eu sabia que seria difícil, a garota por quem sempre tive uma paixãozinha estava parada bem na minha frente pouco tempo depois de me chamar para ir ao Baile de Inverno.
Talvez eu nunca estivesse esperando tanto por algo como estava esperando pela próxima sexta-feira.
“Você não, mas o James por outro lado”, ela voltou a me fitar com seus olhos singelos, “Estava indo para o treino e te vi de longe, então pensei, que mal tem perguntar a resposta dele?”.
“Resposta?”. Deus como Alice estava sempre mais falante do que eu? Como?
Estava acontecendo, na verdade, desde que a vi caminhando na minha direção estava acontecendo, estava fazendo aquilo de novo. Aquele negócio com os dedos que sempre fazia quando estava nervoso.
Passava a unha do dedo indicador no canto do dedão com pressa nos movimentos. Acho que ela tinha percebido meu nervosismo depois que fiquei mais de dez segundos calado após sua pergunta.
Que mal tem?
Todos. Como se o inferno tivesse sido criado apenas para que todos os demônios pudessem me colocar em situações como aquela.
Abri a boca para dizer algo, mas não saia som algum.
“Ele vai querer sim, só está um pouco nervoso”, disparou Alice novamente atropelando minhas tentativas falhas de parar de ser um completo idiota.
“Que bom”, disse Sabrina entre um pequeno saltinho de comemoração. Ela se inclinou e me deu um leve e delicado beijo na minha bochecha que estava completamente vermelha.
Ouvi os gritinhos das garotas não muito longe e quando Sabrina voltou ao seu rebanho de adoradoras elas sorriram e deram risadas entre elas.
E eu ali paralisado do pescoço para baixo.
“Eu não sei com o que concordei por você, mas provavelmente é uma coisa que deixou Sabrina toda alegrinha. Explique-se”.
 “Ela me chamou para ir ao baile com ela”.
Alice se endireitou na arquibancada para me encarar por inteiro. Soltei as mãos com um solavanco como se quisesse afasta-las uma da outra.
“Por isso você ficou parecendo um tomate? Ai, nossa, não, não mesmo... James”.
Ela se atrapalhou com as palavras do mesmo jeito que meus pensamentos estavam atrapalhados, disse sim a Sabrina mesmo sem abrir a boca.
Alice disse sim por mim. Vaca.
“Teremos de encontrar outro terno para você, não queria te falar nada, mas”, ela fez uma pausa para careta e continuou, “aquele terno que sua mãe escolheu não te favorece em nada”.
“Vou pedir para ela arrumar aquele terno horrível”.
“Faça isso”, Alice pegou o celular e começou a teclar uma mensagem de texto.
“Não é para contar para ninguém, Alice. Se contar te mato e te jogo no lago hoje mesmo”.
“Não estou contando nada a ninguém, Patel, só estou avisando minha tia que vou chegar um pouco tarde hoje”.

A aula mais chata passou rápido, tivemos que correr do Professor Mid’Stone, literalmente envolta do campo. Uma volta inteira e entramos no prédio. Ele nos fez correr porque passamos sua aula toda sentados olhando em direções diferentes, Alice olhava para o jogador que carregava uma mala no short e eu olhava para Sabrina Cote que rodopiava um bastão branco na ponta dos dedos enquanto fazia a coreografia junto as outras garotas.
Paramos em nossos armários, Alice pegou o livro de Biologia reclamando do quanto era cansativo fazer o trabalho sozinha enquanto sua colega de dupla não conseguia nem pronunciar o nome da matéria.
A garota tinha vindo do México e ainda não estava tão fluente com o inglês. Mesmo depois de seis meses na escola.
Já vi pessoas se curar de câncer em menos tempo.
Corremos em direção a saída, Alice viu Melinda e Lara caminhando no estacionamento e lembrou que havia esquecido de chamar Melinda para ir junto com a turma para o BashLake.
Tenho certeza de que seria uma boa ideia se Melinda não estivesse acompanhada por Hussain. Ela ficou com o pé atrás e inventou um compromisso, ela foi mais rápida do que eu na desculpa, mas Melinda logo aceitou, só para dar a Lara Hussain o seu primeiro gostinho do BashLake em seu primeiro dia de aula.
O caminho para o lago era sempre o mais longo quando se estava acompanhado por Alice cantando. Gritando. Berrando. Ofendendo o artista. Desgraciando a música Guys My Age.
Ela balançava a cabeça no ritmo dela e não no da música e em alguns momentos fazia a primeira voz e a segunda. Pelos céus, ela fazia os instrumentos.
Comecei a reclamar da sua voz nenhum pouco boa para a música, não só para aquela e sim para todas as outras que já a ouvi cantar.
Quando chegamos ao lago o sol estava em seu ápice, tomando toda a margem do rio, por maior que fosse seu esforço calorento não era possível sobrepor o vento gelado. Como eu queria que o verão chegasse logo.
Turista. Feriado. Gente chata fazendo perguntas idiotas sobre a cidade. Pronto, já havia mudado de ideia.
Sabrina estava lá, tinha chegado em outro carro, logo atrás de nós. Estava tentando evita-la, foi constrangedor nosso encontro mais cedo.
Sentamos em algumas cadeiras que uns amigos trouxeram, quem conseguiu passar em casa e pegar sua caixa térmica a encheu de cerveja e vodca. Isso era coisa dos garotos do terceiro ano.
Eles passaram servindo quem quisesse suas bebidas em copos vermelhos. Logo se acendeu uma fogueira e tudo começou a ficar mais confortável.
Mathias ligou o rádio no carro e aumentou o som porque Alice gritou:
“Essa é minha música”, quando começou a tocar Guys My Age.
Inferno.
Alice sorriu me olhando, ela fazia tudo aquilo com apenas um proposito, me irritar. Éramos amigos, já tivemos contratempo, pois nenhuma amizade é totalmente inquebrável, mas Alice era a garota que eu considerava como um garoto. E nunca a vi com outros olhos.
Quando estávamos no oitavo ano ela me convidou para o nosso primeiro baile da família fundadora. Alice estava linda, usava um corte de cabelo na altura dos ombros naquela época, foi o melhor corte de cabelo dela, ela usava um vestido curto azul marinho como o crepúsculo no dia da independência. Ela estava sempre sorrindo, estava mais feliz do que eu que fui obrigado pela minha avó a aceitar o convite.
Preferia mil vezes ficar em casa assistindo uma serie do que ir ao baile da família fundadora. Mas quando chegamos lá estava tudo arrumado e cheio de gente, acabei optando em não deixar ela sozinha na pista de dança para ir embora.
Entre os fogos de artificio que incendiaram os céus e o buffet servido aos moradores houve uma dança, a música era lenta e melódica como se tivessem jogado mel em todos os convidados que controlavam em sussurros.
Alice me puxou para centro da pista de dança, ela colocou suas mãos em meus ombros, segurei em sua cintura e começamos a dar pequenos passos de um lado para o outro em um vai e vem constante e coreografado.
Ela não tirava seus olhos dos meus e seu rosto estava cada vez mais próximo, e cada vez mais meu estomago girava fazendo-me ficar enjoado.
Não era ela, nunca foi Alice, era um pouco coisa minha, sempre fomos amigos e do nada, assim como se nada pudesse impedi-la, ela grudou seus lábios nos meus em um beijo lento e molhado, fiquei sem reação.
Congelei por inteiro, todos estavam olhando aquela cena, minha mãe e minha  avó, podia vê-las com sorrisos largos bem atrás da cabeça de Alice.
A garota se afastou encarando meus olhos assustados e sorriu.
Eu corri, soltando sua cintura em um leve empurro. Não sei exatamente porque fiz isso, não mesmo, mas estava tão apavorado que corri sem direção, acabei ali naquele mesmo lugar que estávamos no lago.
Minha mãe me encontrou e disse que tudo bem correr, ela disse que as vezes só precisamos de um lugar, um esconderijo, algo que nos faziam ficar seguros.
E era assim que via o lago, um lugar seguro. Um esconderijo para refletir e cair em si. E não um lugar para acender uma fogueira e assar marshmallow e falar mal de outras pessoas.
Melinda estava fazendo isso com Hussain quando olhei rápido para as duas que estavam sentadas um pouco distante do resto do grupo.
“Ela está dando o seu melhor para fazer novas amizades”, começou Alice quando me viu olhar para as duas novamente, “Você deveria fazer isso e deixar de ser um chato estraga prazeres”.
“Se você me chamou para vir e ficar me difamando eu posso ir andando daqui”, respondi rápido.
Sabia que era um chato, não tinha poucos amigos porque queria ter, tinha poucos amigos porque nem todos pensavam como eu.
Tenho opiniões forte sobre as outras pessoas, falo o que quero. Não penso e já estou tagarelando sobre o porquê não quero fazer tal coisa.
Não era tão interessante ser James Patel. Nunca foi. Precisava mudar, precisava ter algo a mais. Uma coisa que talvez fizesse eu ter um pouco mais de amigos e menos inimigos.
“Você vai passar o verão aqui, James?”. Perguntou Caleb, um calouro com dois metros de altura e a voz que parecia um trovão ecoando do céu.
“Ainda não sei, se minha amiga”, olhei para Alice que revirava os olhos enquanto dublava outra música sem prestar atenção, “me chamar para sair desta cidade, vou aceitar o convite na mesma hora”.
“Legal, acho que meus pais vão deixar eu ir para Los Angeles com o meu irmão, estou ansioso”.
Ir para Los Angeles no verão. Que adolescente não pensaria em fazer isso. Não consigo contar quantos filmes já assisti que falava sobre o verão em Los Angeles. E foi naquele momento que tudo mudou. Quando sem perceber estaria acabando com uma vida, destruindo sonho. Se soubesse que abrir a boca para contar aquela mentira, não a única, mas uma das mentiras, se eu apenas soubesse no que aquilo iria acarretar teria ficado de boca fechada.
Eu e minha merda de boca.
“Tenho um primo que está vindo de lá para passar as férias aqui”.
“Serio como ele se chama?”. Puta merda Caleb, agora que percebi. Foi tudo culpa sua. Não vou carregar esse fardo sozinho.
Comecei, agora tinha que continuar.
“Ethan Patel”.

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