Diário de um Príncipe Inventado - Capítulo 2

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Confiança - crença na probidade moral, na sinceridade, lealdade, competência, discrição etc. de outrem; crédito, fé.

Minha vida era uma constante mudança, estava sempre com as malas prontas para aonde quer que fosse meu novo destino. Estava caminhando em direção a estação aonde pegaria o trem e iria para a minha nova escola. Era incrível como uma cidade dividida em três bairros podia ter apenas uma escola. Ou seja, se você nascesse ali seria destinado a passar sua vida toda olhando para os meus portões de ferro. Como se estivesse enjaulado, ser um pássaro sem poder voar.
Não culpo minha mãe de ter a profissão que tem, ela é uma ótima escritora, adoro ler o que ela escreve, ainda mais quando ela dá meus traços a uma de suas personagens em trama.
Lembrei de vê-la observando a paisagem montanhosa nos fundos da nossa nova casa. Fazia três dias que estávamos instaladas naquela casa que tinha a melhor vista que meus olhos já presenciaram.
Mas minha mãe podia maneirar com esse negócio de inspiração. Ela sempre dizia as mesmas coisas, que esse seria o lugar aonde ela escreveria uma saga de seis ou mais livros, mas ela acabava seu conto no segundo livro e foi exatamente esta desculpa que usará para conseguir me trazer para Bashville, a pequena e nada populosa cidade no norte do Canadá.
Diria que foi o lugar mais frio que já estive, mas acabei indo ao Alasca em um futuro próximo. Mas não seria a maior mentira desta história. Então com certeza Bashville era o lugar mais frio que eu já tenha ido.
Meu pai estava atrasado com essa coisa de mudança, era para ter se acostumado com essa coisa rotineira que minha mãe fazia. Eram o que? Vinte e cinco anos de casados? Mas ele ainda se negava em ter o pé firme em uma terra só, fincar raízes, como dizem.
Ele estaria em casa comigo e com a mamãe nos próximos quatro dias, então tive de ir sozinha a escola. O trem vinha do Norte e podia vê-lo enquanto apertava os passos brigando com o vento que parecia querer cortar a minha pele.
A estação era toda feita de madeira, uma estrutura fraca para tanto vento como o daquela manhã gelada. A Diretora, que falou pelo telefone com a minha mãe, disse que o trem era uma das formas mais seguras de se ir para o colégio. Eu acreditei, pois era difícil achar outra maneira de ir para o outro lado do BashLake, o lago que ficava entre minha casa e a escola.
Cercada pela paisagem esbranquiçada pela neve, me preparei para tomar o trem que parou dois metros à frente e abriu suas portas jogando o ar quente e confortador em minha pele fria e quase morta.
Acredito que o bairro aonde morava era o mais movimentado do que os outros dois, no meu bairro ficava o primeiro supermercado construído na pacata cidade, o posto de saúde ficava há duas quadras da minha casa. Minha mãe disse que tinham acabado de abrir uma pequena galeria que era mais conhecida como O Primeiro Shopping Que Aquela Cidade Já Viu. Não muito longe tinha um cinema, mas acredito que os filmes novos não chegaram ali. Desde 1990. E por fim e não menos importante, meu bairro era formado por seis quadras de diâmetro e nada mais do que isso, enquanto os outros era apenas casas dispersas em caminhos longo e de difícil acesso.
Minha mãe garantiu que aquele era o melhor lugar para se morar.
Mas quando coloquei os pés para fora de casa e senti o ar gelado trancar meu nariz logo soube que não era a primeira vez que ela estava enganada.
Entrei no trem e olhei para os lados dentro da cabine que tinha uma combinação rustica com moderna devido as janelas longas que se estendiam pelo vagão todo. Os detalhes de madeira eram inegavelmente perfeitos, do chão ao teto entalhado, como se tivessem sidos desenhados a mão por Deus.
Fui em direção ao único banco que não tinha sido tomado por parte dos estudantes que estava naquele vagão.
Havia livros no banco de couro gasto, então parei e perguntei ao garoto que usava fones de ouvidos se poderia me sentar.
Ele tirou um dos fones e me encarou em silencio com um olhar de reprovação. Ele disse um ‘claro’, da forma mais irritantemente falsa que uma pessoa pode se falar.
Como se estivesse querendo me acertar com seus livros arremessando um a um na minha direção até finalmente se cansar dos meus gritos e grudar no me meu pescoço com as próprias mãos.
Ele colocou seus livros sobre seu colo e me sentei pouco amedrontada.
Vi que ele usava uma camisa de gola polo azul clara e calça jeans escura como todos os outros adolescentes do vagão, terei a conclusão de que ele fazia parte do corpo estudantil.
O encarei esperando que ele tirasse os fones para que eu falasse, tinha apenas uma dúvida, quão longe a próxima estação ficava do colégio.
Esqueci de perguntar à minha mãe quando sai às pressas para não me atrasar.
“Você estuda no Colégio Bashville?”. Perguntei quando assim que percebi que ele não tiraria os fones para que eu pudesse falar.
Ele me encarou da mesma forma que da outra vez e com um tom de superioridade abriu a boca revirando os olhos.
“Sim. Até porque é a única escola da cidade”.
Tentei ser amigável compartilhando uma opinião.
“Não sei como uma cidade deste tamanho tem uma linha ferroviária e não tem outra escola”.
E mais rápido do que uma cobra ao dar o bote ele cuspiu as palavras como um raio.
“Está atrasada para essa aula de História, mas tenho certeza de que o Professor B. Babão adorara cuspir enquanto conta como a cidade foi formada por pequenos vilarejos ligados a linha da ferroviária”.
Olhei para frente e ele voltou o fone no ouvido.
As pessoas daquela cidade não podiam ser todas iguais, então devia ter pessoas diferentes, que poderiam me tratar de outra forma sem serem tão grosseiras.
Ele encostou a cabeça na janela e eu tentei olhar para fora mesmo que sua cabeça tampasse toda a minha visão.
Me lembrei de uma vez que meu pai me disse quando estava chorando no quarto depois de brigar com uma garota no colégio.
Ele disse que nossas vidas eram monótonas e que não pertencíamos a lugar algum, mas que deveríamos ser gentis e graciosos com as outras pessoas independente de nossas frustações momentâneas.
Engoli aquele conselho junto ao choro. Quando voltei a escola cumprimentei a garota que havia gritado comigo, como se nada tivesse acontecido. Ela ficou surpresa com a minha atitude.
O garoto levantou rápido e passou para o outro lado me arrastando no banco. Ele estava com raiva de alguma coisa, para querer descontar em mim.
Certamente sua vida não era tão boa, ele não queria ir à escola, ele tinha brigado com a mãe ou coisa assim, uma pessoa não age daquela forma sem ter algum motivo.
E por mais que fosse esse grandioso motivo não deveria ter me arrastado com o próprio corpo para a ponta do banco.
Ele se afastou caminhando em direção a porta e parou se equilibrando enquanto escorregava do banco com o solavanco ríspido que o trem deu freando ao chegar próximo da estação.
Me recompus no banco e esperei que os adolescentes apressados descessem do vagão. Fui a última a descer, olhei para que lado eles estavam indo e os segui.
Com toda certeza os passos apressados deles só podiam significar uma coisa, eles estavam tão atrasados quanto eu.
Tentei correr por meia quadra, mas minhas pernas finas cansaram rápido demais, pude ver de longe o prédio alto e envidraçado. A grama verde escura do jardim estava molhada, coberta pelo orvalho da manhã. Caminhei rápido em direção a uma mulher que falava com alguns alunos enquanto eles entravam apressados.
“Faltando um minuto, Sr. Junkle”. O jovem Junkle correu em direção a porta grande do prédio cinzento, a mulher rechonchuda me filmou dos pés à cabeça com seus olhos escuros como a noite passada.
“Você dever ser a aluna novata”, disse ela sem expressão alguma em seu rosto, como se apenas mexesse os lábios sem mover qualquer outro musculo de seu rosto redondo, “Lara Hussain”.
Não pude deixar de notar a verruga abaixo de seus lábios pequenos e pálidos. Se aproximasse um pouco mais poderia ver alguns pelos voltando a crescer naquela enorme verruga.
“Sim, sou Lara. Desculpe...”.
O sinal tocou alto de dentro do prédio, mas parecia ter tocado da boca da mulher parada na minha frente.
“Está atrasada”, ela disse no mesmo momento que o sinal tocou, me interrompendo, “vamos, tenho que lhe entregar seus livros e seus horários”.
Ela caminhou na minha frente, seus passos eram longos e pesados. Entramos no prédio e logo fui tomada pelo cheiro de escola. Aquele cheiro inebriante de giz de cera. Todas as escolas que frequentei tinham este mesmo cheiro, o cheiro que persegue você desde o primário.
Ela me parou com a palma da mão tocando minha testa inesperadamente, entrou em uma sala e voltou me entregando cinco livros sem aviso prévio. Apenas jogando-os em meus braços finos.
Voltou a caminhar pelo corredor longo, tentei capturar alguns detalhes, mas era quase impossível fazer isso enquanto fazia minhas pernas de escravas para acompanhar os passos daquela mulher. Ela parou novamente e esperou que uma outra mulher se aproximasse. Alcancei seus passos e parei junto a elas.
“Essa é a novata que falei ontem, Sta. Collins”.
A Sta. Collins sorriu educadamente para mim. Foi a primeira pessoa a fazer isso, e finalmente tive certeza de que nem todo mundo naquela cidade era como o garoto do trem e essa mulher que acabei de descobrir ser a Diretora.
“Certo, Diretora Bailey, vou apresenta-la para a turma”.
A Diretora se afastou virando no corredor a direita. Olhei para a Sta. Collins que continuava com seu encantador sorriso no rosto.
“Seja bem-vinda, Lara Hussain”. Ela disse.
A Sta. Collins não era só muito educada como era uma das mulheres mais lindas que já havia visto. Ela era alta como uma modelo e usava um vestido vintage amarelo claro. Um salto não muito extravagante completava o visual, seu cabelo castanho estava preso a um coque de cabelo emaranhado no alto de seu cabeça deixando apenas algumas mechas soltas. Seus lábios eram rosados como suas bochechas coradas e seus olhos verdes como as folhas das arvores que consegui ver pela janela do trem.
Ela parou na frente da porta aberta da sala e todo o barulho lá dentro se aquietou como um passe de mágica.
“Bom dia, pessoal”, e fez uma pausa enquanto todos retribuíam o cumprimento, “Está é a nova colega de classe de vocês, apresente-se para a turma”.
Surgi na porta entrando na frente da Sta. Collins que não tirava aquele sorriso do rosto por nada.
“Meu nome é Lara Hussain”.
Os alunos ficaram em silencio por alguns segundos, mas logo dispararam seus ‘oi’ e ‘olá’. Acho que eles esperavam uma apresentação mais completa da minha parte.
“James Patel”, a Sta. Collins começou assim que a turma se aquietou novamente, reconheci de imediato o rosto que a encarou quando soou o nome de seus lábios, “Quero que Lara seja sua nova dupla”.
Ela completou e meu corpo gelou como se tivesse sido colocado do lado de fora do prédio de uma hora para outra.
Pestanejei mentalmente três motivos para não querer fazer dupla com ele.
Número 1 ele era um completo idiota, número 2 ele era insuportavelmente idiota e número 3 ele era muito, muito mesmo, idiota.
James Patel, o garoto arrogante daquela manhã, ele conseguiu me irritar no primeiro horário.
Ele foi o culpado de tudo.
O castigo era dele, mas quem pagou por isso?
Eu.

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