Em Minha Mente - Eu


Eu14
Não houve sentimento, a não ser a raiva. Senti isso. Desespero e tudo mais, uma mistura de sentimentos ruins. Só soube desmoronar e não tomar nenhuma outra atitude.
Eu mesmo poderia ter evitado tudo isso, poderia ter pensado antes de cometer os meus erros, poderia nem ter começado essas merdas.
Mas somente eu sei o que passei, e se não fosse por todas essas pedras em minha trajetória, não teria me tornado quem sou hoje.
Não estaria tão sábio, não teria ajudado tantas pessoas com concelhos bons ou até mesmo um simples abraço.
Devo confessar que ainda é difícil, ainda doí e tem vezes que eu tento cantar alto para apenas não ouvir o que a minha mente está falando.
Todos os meus erros, escolhas, caminhos, todos os poços que a vida me afogou me tornou quem sou e eu não poderia estar mais grato por isso.

Consigo me lembrar da minha última batalha, deu início quando eu consegui tira-lo do sério com uma pergunta.
– Você lembra da vez que levou para fora da clínica no meio da noite?
Seguido pela resposta.
– Já falamos sobre isso – ele disse – não aconteceu, deve ter sido um sonho.
– O mesmo que você me beijou – disse.
Minha mãe apenas assistiu, ficou quieta segurando os talheres nas mãos, ela havia feito macarrão com quatro queijos, um dos meus favoritos.
Vi ela me olhar nos olhos, mas não parei.
– Eu vi você manipular o Leandro para ele se machucar, acho que isso não foi um sonho – foi o final.
Minha mãe deixou os talheres sobre o prato e encarou Felipe, vi que ela sentiu medo, estava em seus olhos cor de mel.
– Acho que está na hora de você ir para casa, Felipe – ela disse alto e em bom tom.
Ela se levantou e no mesmo momento Felipe também se levantou e bateu com as duas mãos na mesa.
– Na verdade, está na hora do seu filho parar de ser neurótico.
Levantei também, ele precisava ver que eu não mais, não mesmo, sentia medo.
– Se você não sair de dentro da minha casa, chamarei a polícia – disse minha came caminhando em direção a ilha da cozinha aonde estava seu celular.
Felipe ficou vermelho, ele estava tomado pela raiva, eu só o vi assim uma vez. Com os braços ele empurrou tudo o que estava na mesa para o chão e isso fez minha mãe parar no meio do caminho para o que estava prestes a fazer.
Ele olhou para mim e saltou sobre a mesa de jantar, olhando de cima nos olhos da minha mãe que estava assustada demais para tomar qualquer que fosse sua decisão.
Ele serrou os olhos e pulou em sua direção, eu gritei o mais alto que consegui, tentando pará-lo, mas não o impediu de agarrar a cabeça da minha e bate-la na pedra da ilha fazendo-a cair desacordada.
Então eu senti medo, aquele mesmo que disse não estar sentindo, não mais.
Ele se virou e olhou nos meus olhos, com passos rápidos ele deu a volta na mesa e me agarrou pelo pescoço apertando e fazendo me atravessar no ar até o tapete da sala que foi aonde cai, ele subiu em cima do meu corpo segurando minhas mãos para o alto.
– Eu só queria proteger você, Enzo, só queria ter certeza de que você ficaria bem – ele disse deixando sair de seus olhos lagrimas.
Estava apavorado demais para chorar, estava tentado sair dali me contorcendo contra sua força.
– Eu sei, lembrei de você...
– Como sempre sonhando – ele me interrompeu.
– Não foi um sonho você estar na minha casa na noite que meu pai morreu.
Rapidamente ele soltou uma de minhas mãos e lançou-me um tapa no rosto.
Minha pele ardeu e aquilo me fez parar de se contorcer. Felipe voltou a me segurar ainda mais forte.
– Eu sabia que uma hora ou outra você se lembraria, sua mãe não me viu parado na escuridão, mas você – ele balançou a cabeça em negação – você olhou nos meus olhos.
Ele abriu a boca para dizer algo, mas de sua boca não saiu palavras e sim saliva misturada com sangue que respingou em toda a minha camiseta.
Ele caiu para o lado, engasgado com o que ia falar revelando minha mãe em pé atrás dele.
Então, como em filmes, ouvi as sirenes dos carros de polícia, vi as luzes dançantes pintarem as paredes de azul e vermelho. Um barulho alto da porta se abrindo e eu pude respirar fundo.
Tive de contar tudo para o detetive, contei tudo desde o assassinato do meu pai até o dia atual.
Alguns paramédicos recomendaram levar minha mãe para alguns exames, já que a batida forte havia feito um corte fundo em sua cabeça.
Aguentei firme, Miguel esteve do meu lado até seus pais chegarem ao hospital preocupados.
Eu os vi quando estava sentado na recepção aguardando.
Esperei que em algum momento fosse ver novamente Leandro perambulando pelos corredores, mas não o vi. Acho que todos seguimos nossos caminhos.
Mas tive a oportunidade de conhecer uma pessoa importante, alguém que pode responder muitas dúvidas que planavam na minha cabeça.
– Vou verificar como sua mãe está – disse o policial que respondeu ao chamado de Miguel. Ele já havia explicado como a ocorrência seguiria daqui para frente – mas antes, tem alguém que gostaria de te conhecer.
Assenti com a cabeça concordando e ele se afastou saindo por uma porta dupla. Alguns segundos ele retornou acompanhando por uma jovem mulher.
A jovem, ela caminhou na minha direção, ela tinha o cabelo loiro curto, os olhos castanhos que não me eram estranhos, usava botas e um cachecol sobre a blusa moletom com estampa de uma marca famosa.
Ela parou na minha frente e desabou.
– Eu sinto muito – ela começou a dizer, sem eu entender nada – perdoe ele, me perdoe, não deveríamos...
Fiquei encarando-a, estava sem entender.
Essa é Nataska Utkir, irmã de Mikhail, ela é responsável pelo homem que se apresentou como Felipe.
– Sinto muito pelo o que meu irmão te fez – ela disse, agora de forma que eu entendesse, sentei no banco, tentando juntar os nomes a pessoa que conhecia como Felipe, alguém que mentiu até mesmo a identidade.
– Vou deixar vocês conversarem, enquanto verifico alguns detalhes com os médicos – o policial se afastou, desta vez caminhando e desaparecendo no corredor branco do hospital.
Nataska sentou-se ao meu lado, ela tinha uma certa semelhança com Felipe, agora Mikhail.
– Ele desapareceu há uns anos e só agora tivemos notícias – ela disse.
– Eu o conheci como Felipe, ele era o meu responsável, enfermeiro na Clínica aonde estava.
– O policial me contou toda a situação - ela deu um breve sorriso simpático – o nome dele não é Felipe e sim Mikhail Utkir, ele vivia trocando de identidade para que minha família não o encontrasse.
– Russo?
– Sim, somos de Bor, mas isso não é importante. Fico feliz por você e sua mãe estarem bem, espero que desta vez Mikhail não fuja para longe.
– Por que ele fugiu?
– Meu irmão estudava psicologia, chegou no último ano, mas surtou, e foi aí que o perdemos. Ele viajou por vários países sempre deixando vítimas de sua loucura, ele é doente, mas não sei se teria cura para a cabeça dele. Ele mente, mata, machuca pessoas por que gosta de fazer isso. Procurei ele esse tempo todo para tentar ajuda-lo.
– Ele está vivo – disse tentando de alguma forma não desejar o contrário – ouvi os médicos dizerem que ele não voltará a andar.
– Assim ele não poderá machucar mais ninguém – ele disse fria em suas palavras, ela olhou para trás assim que dois homens de terno e gravata passaram pela porta – esses homens vão pegar alguns dados seus, minha família quer lhe oferecer uma quantia em dinheiro – ela olhou para trás novamente – não é nenhuma forma de suborno, não entenda mal, mas esperamos que isso cubra os danos causados pelo meu irmão.
Um médico a chamou e ela se afastou, esperei poder ver minha mãe que estava ótima.
E sim, Mikhail não pode mais andar, onde minha mãe o feriu o fez ficar paraplégico, mas como a própria irmã disse, assim ele não poderia machucar mais ninguém.
Os dias seguintes foram ótimos, o valor que a família Utkir nos deu, não apenas cobriu todos os gastos como também irá cobrir a minha faculdade.
Não posso mentir, estou feliz de como esse capitulo ruim terminou. Estou feliz por de certa forma estar bem comigo mesmo novamente.
Com o passar do tempo obtive algumas notícias sobre os meus amigos da clínica, James finalmente saiu, ele está levando uma vida tranquila, mas se mudou o leste, preferiu se afastar da família, algumas pessoas preferem exilar seus demônios e Carol, ela continua no mesmo lugar, um dia farei um visita, acredito que ela seja especial, o amor todo que ela tem, a forma como ela o expressa e também a acho divertida.
Pretendo me formar na escola, estou um pouco atrasado, mas preciso de um foco, sei que posso contar com Miguel e minha mãe, tenho muito o que agradecer, quero dizer, agradecer por tudo o que passei, não vou parar com as minhas consultas, quero sempre estar buscando coisas novas, mas sei ainda falta uma coisa.

A grama do cemitério estava baixa e úmida, havia chovido durante a noite anterior, minha mãe me deixou seguir em frente ficando parada próxima a um banco de concreto, senti que precisava dar um fim, da forma que deveria ter feito há meses, precisava me despedir dele.
– Oi, papai – disse parando próximo a lapide com a foto do meu pai em cima da frase BOM PAI E AMIGO – queria começar pedindo desculpas por não ter vindo antes, precisei de um tempo para me curar de algumas dores. Eu sei que não fui o filho que você sempre quis, aquele que sempre sonhou, sei que você teve problemas em aceitar o que sou, mas em todos os momentos eu senti sua falta. Te desejo o melhor, é uma pena eu não ter tido uma segunda chance para dizer o quanto te amo. Só tenho que agradecer por que você me fez o que sou. Eu... vou.… vou orar pela sua paz – limpei meu rosto que já estava inundado de lagrimas, senti o braço da minha mãe me abraçar forte – adeus papai.

Dedico todas essas palavras para um momento da minha vida que pensei não ser amado, aquele momento doloroso onde pensei que não haveria saída a não ser desisti de tudo.
E eu desisti, provei de algo que poderia certamente me matar, mas em meus últimos momentos de dor e angustia percebi que fazendo aquilo não estaria apenas dando fim a tudo. Comecei a pensar na minha família, e por mais que ali, no agora, eles não estavam falando comigo, eu os amava. A voz na minha cabeça parou de sussurrar coisas, foi um silencio total, então meu corpo negou a morte e colocou todo o veneno para fora. Pedi perdão aos céus, me perdoei, e agradeci por mais uma chance.
E foi assim que surgiu o Em Minha Mente, uma constante luta com o que está na minha cabeça, a voz que me coloca medo e insegurança. A voz que as vezes vai embora e outras está tão presente.
É isso. Não vou mentir e dizer que ela desapareceu, as vezes me vejo sentado no chão da cozinha, chorando e doí tanto, mas em outros dias estou bem e tudo se torna apenas um breve momento. Mas é falar sobre isso que me faz forte e não o contrário, é bom ser forte, é ótimo se sentir assim.
Não é fácil, mas você pode tornar essa sua fase ruim em algo bom, tirar como uma lição. Não está se sentindo bem, apenas ligue o som com uma boa música no último, e grite. Você tem que saber que é digno de todo amor, que você não é fraco por ter algumas recaídas.
Procure por ajuda, nenhuma luta é fácil para ser vencida sozinho, há muitos veículos que pode te ajudar.
Você nunca está sozinho, e não deve dar ouvidos para a voz que está dentro da sua cabeça.

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