Now Or Never - O Pecador

O pecador
No meu sonho Selena ainda estava viva, sorrindo enquanto conversávamos com nossos antigos amigos, antes dessa merda toda acontecer, antes dos líderes mundiais decidirem que era bom acabar com a população pobre. O seu sorriso era tão lindo, e a pele dela brilhava, não sei se era por causa da gravidez, mas ela estava a cada dia mais linda.
Acordei e todo aquele velho mundo havia ido embora, queria ser apenas eu, em um dia cotidiano, sem ter que sair armado para fora do que chamo de casa, mesmo que preguem que estamos em segurança.
Se estamos seguros, por que as armas em mãos? Não faz nenhum sentido... ainda sentado na cama ensaiado levantar para ir a uma integração de trabalho ao qual fui resignado fiquei pensando: fizeram tudo isso e acabamos aqui, se escondendo do inimigo.
O míssil enviado contra uma nação não foi o início de tudo, não mesmo.
Primeiro começaram os rumores.
Nos primeiros momentos, veio a notícia de que estávamos no fim dos recursos naturais, isso apavorou a muitos, fomos alertados de uma onda de saqueadores que estava acontecendo.
Muitas apreensões, opressões, a mídia estava levando a sério a martirizarão do presidente. Embora mostrar a população a que estávamos sendo levados, era importante manter os fatos, notícias falsas, conteúdo sigiloso vazado... muitas coisas, muitos fatos.
Até a chegada de uma nova epidemia. Acredito que essa foi a primeira tentativa da Nova Ordem de aniquilar a população, um ano antes do míssil.
Uma parte da população foi convocada a se vacinar contra uma nova bactéria que estava sendo transmitida pelo ar, logo soubesse que apenas os membros deste grupo seleto, incluindo a minha família, eram os de alto escalão.
A outra parte, sem aviso, seguiu a vida como se nada estivesse acontecendo, até as pessoas começarem a andar com máscaras cirúrgicas pelas ruas.
Em menos de dois meses já havia sido confirmada a morte de pelo menos dois milhões de pessoas pelo mundo todo.
Era triste, eu fui um dos selecionados a me vacinar apenas pelo nome da minha família, e era triste saber disso.
Apenas um nome, condecoração, status e aquelas pessoas poderiam ser salvas.
O terceiro passo começou uns seis meses antes do míssil.
Estava no trabalho, no museu de geologia curando algumas peças junto a uma colega de trabalho quando o meu celular tocou, podia ser urgente já que na identificação estava o nome do meu pai. Eu o atendi e ele disse rápido e em bom som: vá ao seu banco e retire todo o seu dinheiro, faça uma transferência ou transforme tudo em criptomoeda, já entrei em contato com o gerente da sua conta, ele precisa apenas da sua autorização, você tem duas horas.
Ele desligou, deixei minha colega de trabalho e corri, passando meu cartão no relógio de ponto, dirigi até o meu banco e tudo o que meu pai disse estava certo, o gerente abriu a porta do banco para mim.
Ele fez um saque em dinheiro de forma rápida e em notas de grande valor. Decidi que era melhor converter boa parte para criptomoeda e isso foi feito também.
O gerente disse: se você tiver alguém que conheça, peça para fazer o mesmo.
Quando sai da sala do meu gerente as portas de vidro me deixava ver a população apavorada do lado de fora, eles batiam no vidro de vinte milímetros como se fossem animais furiosos.
Olhei no meu celular e haviam pelo menos umas vinte notificações de Selena avisando de uma suposta crise bancaria. Os funcionários me protegeram em uma sala segura.
Mas ainda desta sala vazia de concreto conseguia ouvir os tiros, os gritos e o desespero das pessoas que só queriam proteger aquilo que elas trabalharam parar ter e guardar.
O governo tomou tudo, de todas as contas, eles se prepararam para o próximo passo.
E foi quando exatamente o que aconteceu, tudo se quebrou, não havia mais empregos, homens começaram a ser convocados para o exército, as fabricas foram fechadas e as grandes fazendas de produção se tornaram parte do governo.
Por um mês a maior parte da população viveu na escassez.
E ali sentado na cama, olhando para o nada juntei os pontos, tudo fazia sentindo, estava tudo ligado, desde a nomeação dos presidentes e governantes, eles queriam nos submeter a isso desde o início de tudo. Seja na antiga Alemanha, o que foi o Brasil e a Venezuela.
Tudo não passa de fome pelo poder, de fome pelo patriarcado. Os dois últimos passos foram as novas leis.
Roubo, corte as mãos. Homo afetivos, enforcados. Doutrinação absoluta em cima das mulheres que perderam até mesmo o direito de ir e vir nas ruas. Pessoas pobres sendo surradas na sua frente, mesmo que não sejam culpadas de absolutamente nada. Penas como cadeira elétrica, guilhotina, tortura e afogamento... o que nos tornamos?
Pessoas eram punidas em praça pública.
O que nos tornamos? Fomos tomados pelo poder e simplesmente ignoramos o amor dos outros, a tristeza dos outros e perdemos o que nos fazia levar o nome de sociedade. Perdemos a empatia.
O último e o que fez com que todos acreditassem que estávamos próximos ao apocalipse tão aclamado pelos fanáticos. Implantação de uma nova moeda. Minha família foi uma das primeiras a se submeter ao implante.
Do tamanho do grão de arroz, um microchip na palma da mão, com o saldo de um milhão de tiletos para cada cidadão. O que era equivalente a nada em uma época onde um litro de leite poderia valer cinco mil tiletos.
O saldo em dinheiro e criptomoeda foi convertido, o que me deixou com mais de três bilhões em conta.
Foi uma onda de suicídio dos religiosos e aqueles que não tiravam a própria vida eram mortos pelos guardas do governo.
Foi durante a noite que o último ato aconteceu e o surgimento da nova ordem foi finalmente dito na mídia em alto e bom som. O míssil matou milhões de pessoas, o pais ficou em alerta de guerra e as bombas começaram a serem lançadas.
Tudo isso me levou a este lugar, agora sem família, depois de tantas perdas, depois de tanta dor, de ver tanta gente morrer.
Estou eu sozinho com medo do que pode vir pela frente.
Fico me perguntando enquanto caminho até o banheiro, o que mais é possível?
“Daniel?” – Escutei Theo me chamar da porta do meu quarto, com passos apressados ele se aproximou, “Pegaram o Marcos”.
Encarei o reflexo de Theo no espelho, seus olhos estavam avermelhados e ele pálido como uma folha de papel. Seus lábios tremiam e ele claramente estava tendo um colapso dentro de si.
Me virei e segurei seus ombros empurrando levemente de volta para o quarto, eu o sentei na minha cama sem que ele tirasse seus olhos dos meus.
“Me conte o que aconteceu”.
“Fui buscar nosso café da manhã, na distribuição e um dos soldados da tropa sussurrou algo para mim, eu não escutei, mas Marcos sim e ele disse: você tem algum problema com gay, eu sou gay”.
“Nossa”, não sabia o que dizer.
“Os soltados se amontoaram e começaram a surrar ele”, Theo começou a chorar, ele estavam em furioso e ao mesmo tempo com medo, junte essas duas sensações e veja como se sente, “tentei ajudar ele, mas alguém me segurou, os guardas chegaram e um dos soldados contou o que aconteceu, levaram ele, eu não para onde”.
Isso pode acontecer, era apenas isso que faltava acontecer.
Só não entendi o porquê de Marcos surtar e tentar agredir alguém. O novo cargo? Amor?
O amor normalmente fode com tudo.
“Eu sinto muito, Theo, mas você precisa se acalmar”.
Theo começou a fazer um exercício de respiração, ele inspirava o ar pelo nariz e expirava pela boca, de forma calma.
“Não podemos deixar nada acontecer com ele, não suportaria vê-lo sendo enforcado”.
Tinha que pensar rápido, e tudo o que me passou pela cabeça era buscar mais informações.
Rapidamente coloquei meu uniforme novo, e sai da residência, caminhando pelo corredor no alto, olhando para baixo podia ver o pátio onde todos circulavam, estava há uns quatro andares a cima, e virando umas três vezes em direções diferentes cheguei aonde ficavam os detidos.
“Bom dia”, disse ao soldado que me olhou de cima a baixo, “preciso falar com um dos detidos, ele veio para cá nesta manhã, o nome dele é Marcos”.
“Por que precisa falar com ele?”.
Perguntou o soldado me encarando nos olhos.
“Ele era o comandante da minha última missão, e também um amigo de antes, só quero entender o que aconteceu mais cedo”.
O soldado continuou me encarando como se em seus olhos tivesse um detector de mentiras, ele apertou um botão azul na parede e abriu o portão cromado.
”Cinco minutos, cela três”.
Corri pelo corredor e parei diante das grades da terceira cela, Marcos estava sentado no chão de cabeça baixa, ele a levantou e me encarou com os olhos cheios de lagrimas.
“Estou fodido né?”, ele disse em voz baixa e rouca.
“Provavelmente”
“Vou negar tudo, diga para Theo fazer o mesmo”, ele ficou em silencio por alguns segundos e se levantou aproximando-se das grades, “eu o amo e vou fazer o possível para que ninguém o machuque, mas preciso que impeça ele de fazer qualquer besteira, ele tem que negar tudo”.
Ele foi incisivo em cada palavra. Assenti concordando com a cabeça.
“Vão chamar ele pra depor?”
“Se não chamaram ainda, vão”.
“Acabou o tempo”, gritou o Soldado de não muito longe.
“Você vai ficar bem, se algo acontecer, eu te prometo que não o deixarei vê-lo partir”.
Caminhei até a saída e comecei a correr pelo corredor, sabia que a qualquer momento eles poderiam pegar Theo, e ele com certeza iria fazer o possível para proteger seu amor.
Corri, o mais rápido que pude pelos corredores cromados, o piso escorregadio não ajudava muito, mas eu fui rápido, não tão rápido assim.
Quando dobrei o correr os guardas já haviam algemado Theo e o escoltava.
“Mas o que é isso? O que aconteceu?”. Fingi não saber de nada, o General pediu para que eu me afastasse, “Posso apenas dizer algo a ele” e ele respondeu para que eu fosse rápido.
Abracei Theo que não pode se mexer. Ele estava assustado e quieto de uma forma que eu nunca havia visto.
“Ele disse para negar tudo, faça o que o fuzileiro mandou”.
E eu fui puxado e empurrado na parede, fiquei olhando eles escoltarem Theo, não sabia o que podia acontecer dali para frente.
Mas em meio as minhas circunstancias não podia ter esperança de que algo bom acontecesse.
Ele podia jogar tudo para o alto e morrer ao lado do seu amor, ou negar tudo, a escolha era do Theo,
Quanto a Marcos, só esperava que ele sofresse o menos possível na forca. Uma morte rápida e sem dor.

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