Em Minha Mente - Faminto
Faminto
7
Eu
preciso contar uma coisa, faz cinco dias que estou aqui na clínica e não
coloquei nada na boca. Felipe mal fala comigo, ele está furioso pois descobriu
o que eu estava fazendo com toda a comida que ele trazia para o quarto.
O
vaso sanitário entupiu e um profissional teve de vir fazer a manutenção. A Sra.
Thomaz fez um discurso sobre o porquê de eu não poder jogar a comida dentro do
vaso sanitário e disse: se não quer comer não coma.
Aqui
eu não sinto aquelas coisas que sentia quando estava em casa, quando acordo tem
sempre alguém a me espera na porta, quando não é Leandro que vem me
presenteando com rosas brancas todas as noites é Carol que vive fugindo da sua
enfermeira para me dar um bom dia e caminhar ao meu lado pelo jardim. Polly está
deixando de se importar, mas ainda assim não se afasta enquanto caminhamos.
Não
me importo nenhum pouco com o problema que Leandro carrega, acredito que todos
os pacientes da clínica estão aqui em busca de algum tipo de cura. Ele vem se
comportando bem, ele não força toque, sorri de um jeito bobo quando me olha e
me faz rir mesmo que eu tente esconder a fome que me coroe há cada minuto.
Ontem
Felipe se desculpou por ter se afastado, ele disse que estava com muitos
problemas na sua cabeça e eu disse que lhe entendia. Ele também me repreendeu
por jogar toda a comida no vaso sanitário. Agora enquanto penso no que fiz dou
risada, mas na hora estava muito arrependido.
Hoje
é quarta-feira, estou bem, estou feliz, não sinto medo, não sinto raiva. De
certa forma estou feliz de estar aonde estou. Abri os olhos antes que o relógio
despertador tocasse sua sinaleira. Sete horas, eu vi marcar e com um segundo o
som agudo apitou e eu logo o desliguei com a ponta dos meus dedos. Levantei da
cama e me enrolei no roupão, comecei a dormir apenas de cueca, era mais
confortável e também era assim que eu dormia na minha casa.
Minha
casa, eu não sinto falta de lá. Nem me lembro como eram as paredes ou o meu
quarto. Isso apenas em uma semana.
Felipe
bateu na porta três vezes antes de entrar, como de costume.
Ele
carregava uma bandeja com apenas uma maça, ele a colocou em cima do criado mudo
e sorriu.
–
Bom dia – ele disse parando bem na minha frente – feliz uma semana.
–
Veremos se estarei feliz em dois anos – disse caminhando até o banheiro, ele me
segurou pelo braço e me puxou de volta fazendo com que eu o encarasse.
–
Quem disse que você ficará aqui todo este tempo? – Ele me soltou e continuou me
encarando esperando a minha resposta – você ainda tem aqueles pensamentos?
–
Preciso tomar um banho, prometi a Alba que hoje falaria alguma coisa na
reunião.
–
Uma semana sem falar nas reuniões e sem comer, isso que é um recorde – ele
disse enquanto eu caminhava em direção ao banheiro.
Entrei
e fechei a porta, nenhuma porta tinha chave, olhei para o buraco vazio e
revirei os olhos. Tirei o roupão de algodão do corpo e a cueca preta que
vestia, abri a ducha e entrei embaixo da água sem espera-la esquentar.
Tomei
um banho rápido, era apenas para despertar a corpo e me preparar para um longo
dia.
Sempre
vi as quarta-feira como um dia longo. Como se tudo fosse possível acontecer em
apenas um dia e este era a quarta-feira. Era incrível como a hora não passava
fazendo com que eu ficasse parado no tempo. Diferente das outras pessoas eu
sempre gostei das segundas, é o primeiro dia útil da semana e as horas voam
quando se tem muito o que se fazer.
–
Fique calmo – disse Felipe parado na minha frente enquanto esperávamos juntos
aos outros pacientes por Alba.
–
Eu estou calmo – disse com um sorriso no rosto fugindo de seu olhar para
observar o andar de Leandro enquanto ele se aproximava.
–
Vai ser sua primeira vez e isso é...
–
Bom dia, Enzo – disse Leandro interrompendo Felipe que era o único enfermeiro
ali.
Até
aquele momento, pois Polly se aproximava junto a Carol que parecia estar
irritada pois caminhava com um andar rígido como se estivesse marchando batendo
os pés com força no piso.
– Bom dia, Leandro – respondi.
– Você está ótimo – Leandro mordeu o lábio
inferior como se quisesse que eu percebesse que ele estava fazendo aquilo,
Felipe lhe lançou um olhar furioso e ele sorriu educadamente – você também,
Felipe.
– Alba já está vindo. Vou esperar por você aqui
fora – ele se afastou depois de assentir com a cabeça.
Leandro
se colocou no lugar dele e ficou me encarando com seus olhos castanhos. Ele
abriu a boca para falar algo, mas foi interrompido quando Alba se aproximou
abrindo a porta de madeira para que nós entrássemos.
As
cadeiras já estavam em suas posições de costume, em um círculo perfeito. Sentei
ao lado de Carol e Leandro sentou-se ao meu lado, ele não tirou seus olhos dos
meus. Quando todos os jovens se acomodaram Alba sorriu me olhando com seus
olhos grandes e brilhosos.
Olhei
para Melinda que cochichava algo nos ouvidos de James que não via desde o
ocorrido.
–
Bom dia, pessoal – começou Alba com seu tom de voz trazendo entusiasmo e
alegria em seu riso – não tem ninguém novo então não será necessária uma
apresentação. Hoje gostaria de ouvir uma pessoa que vem se guardando desde que
chegou aqui - Ela se sentou e cruzou as pernas, olhei para Leandro que agora
prestava atenção nela e não em meu rosto – Enzo, conte o lhe trouxe aqui, por
favor.
Os
olhos de todos estavam me fitando, Carol já sabia como tudo aconteceu, eu
contei para ela no primeiro momento que ficamos sozinhos no domingo durante o
almoço. Provavelmente todos ali já sabiam do meu passado, pois com certeza
Carol já havia contado. Mas eu precisava falar, mesmo que fosse da forma mais
resumida que eu conseguisse.
–
Olá, meu nome é Lorenzo – eu nem sabia a forma como começar –, mas prefiro que
me chamem de Enzo. O que aconteceu na minha vida esteve em todos os jornais da
cidade, a TV local filmou a minha casa e deduziu o que aconteceu na cena do
crime – disse de forma rápida, Leandro se inclinou para frente se aproximando
ainda mais para ouvir o que eu iria dizer – encontrei meu pai morto na cozinha,
as minhas lembranças são embaralhadas, mas isto me abalou muito.
Fiquei
em silencio, eu pretendia acabar a história por ali. Com abalou já dá para se entender que fiquei abalado e fui parar ali.
–
O que aconteceu, Enzo? – Perguntou Leandro acabando com o silencio com a sua
voz rouca.
–
Eu perdi meus amigos – eu disse sentindo um certo desconforto – fiquei um tempo
sem ir ao colégio e quando voltei todos ficavam me olhando como se me
julgassem, como se eu tivesse matado o meu pai.
–
Mas você sabe que não fez isso, Enzo – disse Alba tomando a frente de um outro
garoto que ia opinar.
–
Eu sei – eu não sabia, eu nem sabia se gostaria de continuar falando, não
estava tão confiante como antes – foram tantas coisas, eu me sentia tão
sozinho.
–
Você não tinha ninguém.
James
disse fazendo com que todos olhassem para ele.
–
Eu não tinha ninguém – olhei para os lados como se estivesse procurando um refúgio
– sentia medo, raiva, muita raiva. Principalmente da minha mãe, nem parecia que
ela tinha perdido o marido, ela era tão fria.
–
As pessoas reagem de formas diferentes quando se trata da perda de um ente
querido.
–
Eu não entendo por que fiquei assim – interrompi Alba que se recolheu na
cadeira – meu pai era estupido comigo. Ele odiava o meu jeito, ele não falava
comigo. Uma vez ele me pegou beijando um garoto no meu quarto – fechei os
olhos, eu não queria falar sobre aquilo, mas precisava tirar essas lembranças,
precisava contar – ele me espancou e disse que filho dele não iria ser uma
bicha.
–
Se você preferir parar...
–
Quando ele morreu aquilo me fez se tornar um lixo, todas as coisas que ele
falava parecia ser tão real. Minha cabeça ficava repetindo tudo como um disco
riscado. Cheguei em um ponto em que eu só pensava em morrer, planejei muitas
formas diferentes de tirar a minha própria vida.
–
Eu sinto muito – disse Carol limpando o rosto.
–
Não chore garota – eu disse com um sorriso no rosto tentando esconder que a
minha vontade era de chorar junto com ela – acho que eu aprendi, um pouco
nestes sete dias, eu não deveria ter dado ouvidos a Lili, quando ela disse
todas aquelas coisas ela só estava falando a verdade, uma dolorosa verdade. Eu
me joguei na rua, me joguei querendo ser atropelado e morrer – fechei os olhos
novamente deixando as lagrimas escorrerem, senti a mão de Leandro tocar a
minha.
–
Você não morreu – ele disse e eu abri os olhos – você ganhou uma segunda
chance, e deve usa-la para melhorar.
–
Sim, as vezes Alba, algumas vezes eu escuto aquela voz dentro da minha cabeça.
–
Não dê ouvidos a ela, querido – disse ela se aproximando e se ajoelhando na
minha frente.
Leandro
soltou a minha mão e voltou a se endireitar na cadeira.
–
Não posso, eu disse a Sra. Thomaz que precisava de ajuda, eu ainda preciso.
–
Você sabe porque é importante falar sobre essas coisas, Enzo – balancei a
cabeça dizendo não – é importante pois precisamos passar pelo segundo estágio,
após assumir que precisamos de ajuda, também precisamos saber aonde precisamos
focar a ajuda e agora você sabe.
–
Preciso parar de escutar essa voz na minha cabeça.
–
Sim – ela concordou segurando as minhas mãos, Alba se levantou e varreu a sala
com seu olhar atento – quero fazer um pedido a vocês, tem mais alguém que
escuta uma voz na cabeça, e está voz diz coisas horríveis? - Umas cinco pessoas
levantaram as mãos – Preciso que vocês escrevam tudo o que já ouviram dessas
vozes, mas não quero que se prendam a isso, na sexta-feira vamos fazer um
exercício com o que vocês escreverem – Alba voltou a me encarar – estou muito
feliz por você ter falado conosco hoje, Enzo. Bom – ela voltou a falar para a
turma – agradeço pelo tempo de vocês, estão dispensados e até sexta-feira.
Leandro
não falou nada depois da reunião, ele se afastou e depois eu não o vi. Carol
foi a única que disse que tudo ficaria bem. James sorriu ao sair da sala com
seu rosto enfaixado.
Felipe
se aproximou veloz e logo me puxou de perto dos outros.
–
Como foi? – Ele perguntou curioso.
–
Fui bem, acho que eu entendi o conceito deste lugar, fazer eu lutar contra os
meus medos.
–
Fico feliz que gostou de falar – ele fez uma pausa e sorriu como uma criança ao
ganhar um brinquedo – acho que você ficará mais feliz agora.
–
Por que? – Perguntei curioso.
–
Você tem uma visita – ele disse animado.
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