Correntes Secretas - Ondas (Parte I)


Ondas

Coloquei a mão no rosto tentando acalmar a pele que ardia. Tia Ingrid lançou-me mais um olhar de desaprovação, ela subiu a escada com seus passos pesados desaparecendo no corredor para os quartos do andar de cima.
– Obrigado por me tirar de lá – Lúcio disse ainda olhando em meus olhos, ele se aproximou e me abraçou – eu não fiz aquilo, eu juro.
Respirei fundo o ar gelado da sala, por um breve momento senti minhas pernas bambearem, era a grave fome me golpeando. Não ficava tanto tempo assim sem comer.
Lúcio se soltou de meus braços e beijou a minha testa.
– Descanse, eu vou tentar fazer o mesmo – caminhei subindo os dois degraus para a sala de jantar, logo estava entrando no bainheiro por uma passagem atrás de uma parede de pedras.
Fiquei me encarando no espelho em cima da pia de quartzo branco. Estava sentindo a saliva salgada na boca e o pavor que percorria por todo o meu corpo. Estava acontecendo tantas coisas, a forma como Tia Ingrid reagiu, o envelope vermelho, o homem mascarado, essas ondas de tamanhos diferentes vinham e me derrubavam dentro de outras ondas cada vez maiores.
Abri a torneira e com as minhas mãos molhei meu rosto, estava tentando de alguma forma acalmar meu coração, que passou os últimos dois dias em um ritmo acelerado e incomum.
Respirei fundo, as coisas deviam dar certo dali em diante, embora ainda estivesse curioso sobre o que se tratava o envelope. Embora tudo aquilo de certa forma com toda certeza era culpa de Lúcio.
Não sei se foi a fome, mas quando abri meus olhos consegui ver o rosto de Jean pairando perto do meu corpo, e ele sorria como se estivesse pronto para dar mais um de seus ensinamentos.
Foi a fome.
Peguei a toalha enrolada, macia e branca, e enxuguei meu rosto com ela, a dobrei e a deixei sobre o quartzo antes de sair do banheiro.
– Senhor – Começou Jeferson me surpreendendo assim que me viu sair do banheiro – Preparei um lanche para o Senhor, quer que eu leve para o quarto?
– Sim, vou ver se um banho consegue tirar a dor de cabeça que estou sentindo – eu sorri e assenti com a cabeça – obrigado, Jeferson.
Ele assentiu como se agradecesse também, caminhei até a sala de visitas novamente e subi a escada para o segundo andar.
Caminhei pelo extenso corredor até chegar no meu quarto. A cama estava arrumada com os lençóis brancos, do dossel caindo com um tecido fino e quase transparente.
Era incrível como aquele espaço era tão branco e cintilante, a minha cor favorita.
Eu tinha que fazer isso, sabe, ocupar a minha mente, para mantê-la longe da imagem de Jean, por que ele parecia tão presente naquele cômodo se em nenhum momento tivemos algo intimo ali.
Caminhei até o banheiro, branco com detalhes em quartzo preto, a banheira em um canto e o restante se espalhando deixando tudo bem arquitetônico. Caminhei até a banheira e abri a torneira de agua quente, sentei na beirada e acabei...
– Fábio? – Acordei com a visão embasada, começando a reconhecer a voz e o rosto de Lúcio que me apoiava em seu colo segurando-me com suas mãos grandes e firmes – Fábio?
– O que aconteceu? – Perguntei tentando me levantar, mas ainda não conseguia fazer isso.
Ele me olhou e sorriu.
– Dia estressante e com certeza você não deve ter comido nada hoje.
Estava recobrando os sentidos quando percebi aonde estava.
– O que está fazendo dentro do meu banheiro?
Me levantei, tirando-me de seus braços, olhei a minha volta apenas para ter certeza de onde realmente estava.
– Bati na porta, você não respondeu, entrei e vi uma poça d’agua saindo do banheiro, então;
– Obrigado.
Lúcio estava molhado, e eu também, ele com sua camisa branca transparente e eu ainda com o terno pesado. Conseguia ver sua pele, conseguia ver o mamilo de seu peito, os músculos de seu abdômen e foi o necessário para me deixar encarando-o.
– Você está melhor? – Ele perguntou levantando-se do chão molhado.
Assenti com a cabeça concordando, me despedindo de meu devaneio, ele estendeu a mão e eu a segurei apoiando-me para me levantar e então meu corpo magricela caiu em seus braços, ele com seus músculos me segurou firme. Olhei para ele de onde estava, ele era mais alto, e ainda mais belo de tão perto, seus olhos nos meus e nossos corpos molhados e colados.
– Senhor Laguna – Disse Jeferson com seus olhos escuros arregalados com o susto que levará – o que aconteceu?
– Ele precisa comer alguma coisa – começou Lúcio ajudando-me a me endireitar – o encontrei desmaiado a beira da banheira.
Jeferson estendeu a mão para que eu me apoiasse nele, e me levou até a cama no quarto, ele me sentou na cama como se eu fosse uma criança.
Parecia uma criança. Fraca e quebrável. E então como se eu fosse um boneco ele começou a tirar a meu terno. Lúcio o ajudou segurando os meus braços, e depois o ajudou a tirar a minha camisa molhada.
– Estou melhor – disse ainda fraco – eu juro – olhei para Lúcio – vá se trocar, não precisa ficar resfriado, obrigado.
Jeferson olhou para ele e concordou com a cabeça, vi Lúcio sair do quarto e antes que pudesse negar Jeferson estava empurrando em minha garganta uma colher de sopa.

Quando acordei era quinta-feira, com certeza estava melhor do que no dia anterior, cansado, mas tão fraco como antes. Sentei na cama e olhei em direção a poltrona branca ao lado da lareira, Lúcio estava sentando dormindo, coberto por uma manda azul clara.
Ele deve ter passado a noite ali sem Jeferson saber. Duvido que ele sabendo o deixaria dormir desta forma.
Duas batidas na porta e eu vi o rosto de Jeferson e Lúcio acordar ao mesmo tempo.
– Bom dia Senhor Laguna – Disse Jeferson, ele olhou para Lúcio – Marcchior.
– Bom dia, Jeferson – ele respondeu com um sorriso pretencioso e eu sorri para os dois – espero que não tenha se importe, mas acabei vindo para cá, não queria deixa-lo sozinho.
– Obrigado pela companhia – disse e tirei o cobertor de cima do meu corpo me levantando da cama.
Lúcio fez o mesmo levantando-se da poltrona enquanto caminhava em direção ao banheiro.
– Posso confiar em você indo ao banheiro sozinho? – Ele perguntou com ar de deboche em seu sorriso.
– Provavelmente não, mas por hora sim.
– Senhor Laguna – Disse Jeferson chamando a atenção para si – O Senhor George Carlos ligou, informando que o funeral de Jean começará as nove horas.
E mais uma onda, uma das quais eu precisaria passar naquele dia. E eu tinha certeza de que ela não seria a única.
– Vou me preparar – disse em resposta – envie uma coroa de flores para o local, logo desço para o café da manhã – Jeferson assentiu – Obrigado.
Lúcio deu um passo à frente e abriu a boca para falar algo que ele mesmo se impediu. Ele recuou e sorriu abaixando a cabeça.
Eu o encarei, Jeferson já não estava mais no quarto, havia saído e fechado a porta. Era apenas nós dois.
– Eu acredito em você – disse encarando-o – sobre tudo.
Ele me olhou nos olhos como se não estivesse entendendo.
– Sinto muito por tudo isso, eu sei que é minha culpa, mas não quero que...
– Preciso de você – o interrompi dando um passo à frente – meu noivo vai ser enterrado hoje, e eu não sei quem o assassinou e nem os motivos para isso, mas preciso que você fique – dei mais um passo em sua direção – quero entender isso, o porquê disso tudo, mas preciso que fique comigo, que passe as noites sentado nesta mesma poltrona, preciso ter você por perto.
– Se não me entregar, ela não vai parar, Iris Gabriela não brinca, só eu sei disso.
– Se ela não brinca é bom não aparecer na minha frente hoje durante o funeral – disse dando mais um passo à frente – ela tirou algo de mim. E agora sou eu quem não está brincando.
Lúcio ficou me encarando, ele queria dizer algo, sei disso, ele queria dizer para que eu não me envolvesse, ele queria dizer adeus e voltar para a vida que ele mesmo disse não aguentar mais. Mas ele não disse.
– Eu tenho medo de qual será o próximo passo dela – foi o que ele disse.
– Eu não, não tenho medo dela – coloquei a mão em seu abdômen – vista-se, temos um funeral para ir, somente os culpados fogem do ato final.

Trinta minutos, foi o tempo que durou a viajem da mansão até o cemitério. Então o motorista estacionou o carro e eu encarei Lúcio que estava ofegante e nervoso.
Também estava, não posso mentir, mas a raiva que eu sentia era maior do que qualquer dor de perda que eu deveria estar sentindo.

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