Now Or Never - Lar que não é lar
Lar
que não é lar
Quando
passamos de um lado para o outro começamos a notar as diferenças, na Alemanha
não havia tantas raças e etnias diferentes, mas quando passei para outro lado
do portão pude notar os africanos, os japoneses, coreanos, holandeses, e outros
que se vestiam como vikings. Algumas crianças choravam no colo de sua mãe
enquanto outras transitavam com as mãos estendidas nas janelas dos carros que
pareciam mau tocar o chão.
Entrei
no carro e sentei ao lado de Selena que colocou nosso filho no colo, ela não
tirava os olhos dos meus, tentava não olhar para fora do carro, tentava não
acreditar na situação que aquelas pessoas viviam.
“Aonde
estamos é bem melhor do que este lado da Fortaleza”, disse Selena tocando meu
rosto com a ponta de seus dedos.
Era
bom poder senti-la, era bom estar com ela, mesmo que meu estomago estivesse
embrulhado e dolorido.
Não
sabia exatamente o que estava acontecendo, mas a minha mente me dava mais de um
milhão de pensamentos, fica imaginando a vida miserável daquelas famílias que
encarava pela janela escurado carro.
Eles
eram pobres e com poucos recursos disponíveis, a Fortaleza mesmo que não longe
do restante do mundo era nada mais nada menos do que uma capital dividida entre
a pobreza e a riqueza. Estávamos fadados e sobreviver pelo dinheiro.
Antes,
há muito tempo atrás, nossa moeda de troca era a nossa palavra em compromisso,
favores, essa moeda de troca foi tomada pela entrega de bens matérias como
animais hoje extintos pela loucura do homem sem estimativa de vida alguma.
No
passado não se pensava que um dia nossos recursos para viver seriam tão
precários ou inexistentes. Não falo por mim, falo pelas mães que ficavam sem
comer para poder dar algo para alimentar a filho pequeno.
Passou
a circular papel, o chamado dinheiro. E ele só evoluiu nos tornando pessoas
capitalistas alimentadas pela esperança de ter o suficiente para poder comprar
algo com aquele pedaço de papel.
Os
recursos eram mais enigmáticos nos últimos dias antes da iniciativa da Nova
Ordem, e eles logo implantaram chips na palma de nossas mãos. Essa era a nova
moeda de troca, dinheiro eletrônico.
No
meio do M de nossas mãos, pobres são as pessoas que não puderam pagar pelo
implante. Esses logo foram eliminados, e a guerra começou, cada centavo perdido
pelos mortos com o chip implantado era diretamente do governo anarquista.
Foi
assim que a Alemanha construiu a Fortaleza com a promessa de ser o lugar mais
seguro do mundo em dias difíceis.
Como
disse, estamos fadados ao capitalismo, não foi possível parar quando começou e
todos estavam envolvidos com o pior erro da humanidade.
Um
pouco antes de chegar aos portões de ferro que separava a rale da nobreza havia
uma guilhotina e forca instaladas em uma praça formada em um círculo de grama.
O
carro preto parou no semáforo vermelho e pude encarar o sangue que escorria da
lamina pouco enferrujada do outro lado da rua.
Era
como nos dias medievais, quanto mais o homem tentava sua evolução, mais rápido
para trás ele dava, em direção ao um passado sóbrio e devastador.
“O
que é isso, Selena?”. Perguntei com meus pensamentos confusos quase
atrapalhando minha fala.
“O
governo perdeu verbas nos últimos seis meses com penitenciarias, decidiram
voltar com a lei de morte”.
“Eles
dizem que este é o começo de um novo milênio?”.
O
motorista do carro lançou um olhar desaprovador em minha direção. Devia tomar
cuidado com as minhas opiniões expostas em voz alta. Nem todos concordavam e
com toda certeza não queria que fosse meu sangue escorrendo naquela guilhotina
metálica.
“Algumas
pessoas doentes começaram a surgir, algumas doenças são incuráveis”, ela fez
silencio quando sentiu o leve solavanco do carro começando a acelerar portão a
dentro, “Os doentes são condenados a eutanásia”.
“Sem
recursos, está como o lado de fora, a pobreza atinge quem não tem...”.
Fiz
silencio ao receber mais um olhar pavoroso do motorista. Baixei a cabeça
esperando que ele acabasse de estacionar. O carro parou e ele tirou o sinto de
segurança saindo do carro antes que nós.
Sai
do carro e puxei meu filho do colo de Selena abraçando-o. Selena saiu e fechou
a porta atrás de si.
O
lado de dentro dos portões de ferro era completamente diferente do lado
cinzento que tomava grande parte ao atravessar a rua.
Havia
cor, as casas que cercavam o palácio dourado eram coloridas e vividas. A grama
era verde nos alambrados, a havia placas com o nome de cada família na frente
das casas. Olhei para a esquerda e vi o nome da minha.
Endlen
escrito em cursiva em uma placa branca fincada na grama do jardim a frente das
tulipas amarelas.
Minha
casa era como as outras, um modelo único. Vitoriana com janelas altas de vidro
de guarnição de tom madeirado, a frente era pintada em um verde pouco mais
claro que o da grama, a varanda tinha os cantos arredondados e a porta era
branca destacando-se na única parede laranja. Olhei para as outras casas da rua
e todas eram simetricamente iguais, da cor das paredes ao gramado, como se
tivessem sido construídas de uma só vez.
“É
uma casa linda, não é”.
Concordei
com a cabeça mesmo que meus pensamentos não dissessem o mesmo.
“A
decoração interna é a gosto, tentei trazer o máximo possível da nossa antiga
casa de sete meses atrás antes de você partir para o seu treinamento”.
“Tenho
certeza de que o que quer que tenha feito está lindo como você”.
Passei
pelo caminho de pedras do jardim até a varanda encarando o laranja na parede da
porta branco, nunca gostei do laranja, podia ser qualquer cor, podia ser verde
como todo o resto.
Selena
abriu a porta e entrou na minha frente, troquei meu filho de braço e entrei. A
casa tinha um cheiro diferente, não era cheiro de casa, não mesmo. Não tinha o
cheiro de família ou de lar.
Era
de um cheiro metálico que fazia meu nariz arder levemente. Tentei ignorar, mas
o espirro foi inevitável.
“Você
precisa de um banho”, disse Selena tomando o pequenino dos meus braços, “e de
um repouso, mal posso imaginar por tudo o que passou”.
“Não
tente, não foi a pior de todas as situações, mas tenho certeza de que não quero
voltar lá para fora nunca mais”.
“Nunca
diga isso em voz alta, alguém pode ouvir e pensar que você quer realmente virar
um desertor, quatro ex soldados foram condenados a forca por causa disto”.
“Não
quero isso, meu amor”, eu a abracei, estava precisando disso mais do que ela, e
por mais que me sentisse sujo depois de alguns dias sem um banho eu queria
permanecer ali abraçado a ela sem pensar no amanhã.
“Vou
tomar um banho e quero que me conte tudo sobre esses últimos meses aqui”, disse
soltando-a de meus braços.
Me
assustei com o som de bipe repentino que começou, a muito tempo que não ouvia o
tocar de um telefone residencial. Acho que parei de ouvir aquele som quando
tinha uns vinte anos.
Selena
se aproximou do aparelho telefônico que em cima de uma mesa alta de madeira em
cor de carvalho. Ela pegou o aparelho e o levou até a orelha.
“Residência
dos Endlen”, ela fez silêncio e tirou o telefone da orelha segurando em uma das
mãos apontando-o para mim, “é do palácio, para você”.
Imaginei
mil possibilidades de alguém do palácio estar entrando em contato em tão pouco
tempo de estadia na Fortaleza.
Imaginei
o motorista de olhar fulminante falando para um dos líderes sobre minhas
expressas no carro, se estaria sendo convocado para partir tão cedo ou até se
receberia uma medalha por ter voltado atrás para salvar Ed.
Peguei
o telefone e o levei até o ouvido.
“Hey,
é o Theo”, ele nem precisava se apresentar, reconheceria aquela voz de qualquer
forma, “Caro, Endlen, estou no palácio e fui informado de que não tenho uma
família aqui. Não consegui pensar em ninguém, você poderia me receber na sua
casa por alguns dias?”.
Ele
falou rápido, e logo entendi, ele não podia ir para casa do Fuzileiro, com
certeza aquele grandalhão tinha uma família a quem responder e com aquele
segredo tendo de ser guardado ele não podia pedir tal coisa assim para ele.
“Sim,
claro. Estou na primeira rua, a duas quadras do palácio”.
Coloquei
o aparelho no gancho com dificuldade.
“Quem
era?”.
“Um
amigo, ele precisa de um lugar para ficar, disse que poderia ficar aqui”,
Selena rapidamente tirou seu sorriso dócil do rosto arqueando as sobrancelhas e
franzindo a testa, “ele é uma boa pessoa e não tem ninguém com quem contar”.
Ela
expirou e sorriu mesmo que estivesse nítido sua não concordância.
“Tudo
bem, vou ver como está o quarto de hospedes. Nosso quanto é a terceira porta lá
em cima”, disse ela se afastando e levando meu filho junto a ela.
Encarei
as paredes cobertas com um papel de parede Royal em tom bege. A escada ficava
atrás do sofá estampado branco e cinza claro, toquei o corrimão madeirado e
subi os degraus até o segundo piso da casa. Havia um espaço vazio com apenas um
tapete estendido no chão, um tapete marrom claro no chão de tabua corrida
escura.
Segui
até a terceira porta e pus-me a chorar quando olhei a cama, era igual a de meus
pais, sabia que não era a mesma, mas era igual como uma cópia, uma réplica
exata da cama entalhada em madeira rustica.
Estava
precisando chorar, estava precisando desde quando deixai tudo para lutar por
algo que não acreditava fielmente.
E
chorar podia ser um grito político silencioso.
Fechei
a porta atrás de mim e caminhei até o banheiro que ficava atrás de outra porta
no quarto. Passei pelo closet cheio de ternos e vestidos como o que Selena
estava vestindo. O banheiro era mais claro do que a casa toda. Com acabamento
em mármore branco.
A
janela alta acima da banheira branca dava vista para rua, abri a torneira
deixando a água quente tomar conta da banheira enquanto me encarava no espelho
acima da pia de vidro na pedra de mármore branco.
Quando
cuidava de obras de arte na Capital não tinha barba, meu rosto não tão magro e
as maças do meu rosto não eram tão arqueadas quando as que estava vendo no
espelho. Minha pele estava uns dois tons mais escura. Não tinha percebido o
quão exposto fiquei ao sol antes de me encarar daquela forma. Tirei a roupa, me
livrando do uniforme sujo e pesado.
O
camuflado nunca me caiu bem,
Coloquei
um pé por sua vez na água quente que fez minha pele arder aos poucos. Sentei
dentro da banheira ficando até os ombros imerso pela água. Ao lado da banheira
havia frascos coloridos e rotulados, peguei o sabonete líquido e a esponja
úmida, eu o despejei na esponja e senti um certo alivio ao me esfregar.
A
água em questão de segundos foi se transformando de cristalina a suja.
Levantei
deixando que toda a sujeira deslizasse pelo meu corpo magro e faminto. Liguei a
ducha e levantei a cabeça esfregando o rosto queimado com as mãos.
Depois
do banho me enrolei em uma toalha e calcei os chinelos que Selena colocou na
porta do banheiro, parei no closet, abaixo dos ternos e roupas sofisticadas
abri as gavetas procurando por roupas confortáveis. Encontrei uma bermuda de
moletom cinza e uma camiseta lisa azul. Eu a vesti e sai do closet. Selena
estava parada ao pé da cama.
“Servi
um lanche na sala, seu amigo está tomando um banho no quarto de hospedes”,
Selena sorriu como faz genuinamente, “Ele parece ser uma boa pessoa”.
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