Correntes Secretas - Ondas (Parte II)
O motorista estacionou o carro na
frente da entrada para o cemitério, meu corpo arrepiou-se, mesmo que eu não
quisesse estar ali, era a minha obrigação.
Meus pensamentos estavam em outro
lugar, estavam perdidos no exato momento em que minha tia me bofeteou, e foi
ali que a vi pela última vez.
Foi estranho sair do carro preto de
vidros escuros e todos os olhares se voltarem para mim. Era como se todos me
culpassem por algo, ou deveriam, foi na minha casa aonde aconteceu todo o
desastre. No meu evento.
Passei a mão no meu paletó preto e
respirei fundo, olhei para o céu nublado, o que não era típico para a época do
ano, e comecei a caminhar em direção ao aglomerado de pessoas.
Eles estavam reunidos a volta do
caixão fechado de Jean, os pais dele ao lado do Padre que usava uma sotaina
vermelha. Na minha cabeça passou a imagem do sangue nas minhas mãos. Olhei para
a grama verde úmida pelo relento.
Meus passos foram ficando cada vez
mais lentos até eu estar ao lado de uma mulher que chorava baixo, com soluços
profundos.
Senti meu peito apertar, e foi como
se algo o atravessasse lentamente, a dor começou ali, naquele momento. Era como
se eu precisasse ver para acreditar que tudo aquilo realmente estava
acontecendo.
Minha boca salivou, um gosto salgado
e ao mesmo tempo amargo, de meus olhos começaram a escorrer lagrimas, e eu
desejei mentalmente para acordar daquele pesadelo.
Embora realmente acreditasse que não
estava mais dormindo.
O Padre começou a rezar, mas meu
inconsciente bloqueou qualquer que fosse as palavras ditas por ele. Estava
perdendo ele, e eu estava sentindo aquilo, minha mente estava eliminando-o
refrescando-me com memorias.
Lembrei-me da vez que ele com seu
violão cantou para mim, a voz meia rouca, mas na melodia perfeita, não queria
perde-lo. Com a mão no peito, lembrei-me do dia que o conheci, Tia Ingrid nos
apresentou, ele se tornou meu tutor, o seu sorriso perfeito, seus caninos bem
afiados como os de um lobo. Seus olhos vibrantes. Eu estava perdendo ele. É
claro que nem tudo o que se passou na minha cabeça foram felizes, brigamos
algumas vezes, no café da manhã, durante as aulas, alguns jantares e no dia que
Lúcio chegou na minha casa. Eu o perdi.
E doeu, não consigo descrever o
quanto aquilo doeu, talvez se eu dissesse que estava na chuva, e chovia cacos
de vidro. Talvez assim dê para entender.
Queria muito que ele conseguisse me
ouvir, apenas me abraçar.
Passei a mão no rosto limpando as
lagrimas que o inundou, olhei para os lados e quem estava falando suas últimas
palavras era o Senhor Carlos.
Ele parou de falar e todos olharam
para mim, como se esperassem por algo, mas eu não tinha nada, estava totalmente
despreparado para aquele momento. Então senti um braço passar pelos meus ombros
e me puxar para mais perto e um abraço apertado.
Olhei para Iris Gabriela, que com um
lenço preto enxugou as lagrimas de seus olhos.
Tentei me contorcer para sair dali,
mas ele me pressionou ainda mais.
Os olhos saíram do meu alcance e
então o caixão começou a escorregar para dentro da cova já pronta para
recebe-lo.
– Eu sei querido, deve doer muito –
disse Iris Gabriela, para que somente eu a ouvisse – foi uma pena, você nem
conseguiu se despedir.
– Quero que me solte – ordenei, e ela
me soltou, mas se colocou na minha frente.
– Você recebeu um convite, espero que
aceite – ela disse ainda em tom baixo – é claro, caso você esteja interessado
em saber a verdade.
Estava tremendo, a dor que percorria
meu corpo havia se transformado em ódio, as lagrimas secaram com o vento
gelado. Eu só queria gritar para que ela saísse de perto de mim.
– Acredito em tudo o que Lúcio me
contou. Só não consigo entender como você é capaz de continuar a fazer isso.
– Não espero que você entenda – ela disse
ríspida – ah, Fábio, você é muito inocente, acredita em tudo o que lhe é
falado, acredita em meias verdades. Agora você sabe do que eu sou capaz.
Dei um passo para traz, e ela um para
frente.
– Eu não sei que tipo de joguinho doentio
você gosta...
– Forca – ela disse me interrompendo –
espero que você saiba perder, por que é exatamente o que vai acontecer – o
Senhor e a Senhora Carlos se aproximaram e ela passou a sorrir – eu sinto muito
pela sua perda.
– Obrigado por vir, Fábio – disse a
Senhora Carlos, ela me abraçou forte – Jean falou muito sobre você nesses seus últimos
dias, ele realmente amava você.
– Ele ainda está muito abalado –
começou Iris Gabriela – nem conseguiu dizer suas últimas palavras.
– Todos nós estamos – concluiu o
Senhor Carlos – temos que ir, Querida.
– Vamos fazer uma recepção na nossa
casa, caso queira ir, será muito bem-vindo.
Sorri e assenti concordando com a
cabeça.
– Agradeço pelo convite, mas não sei
se sou capaz de tamanha simpatia com os outros em um momento como este.
– Fique à vontade para ficar o tempo
que for preciso.
Os dois se afastaram.
– Se quiser conversar, aceite o meu
convite, sexta-feira é um ótimo dia para fazer uma visita.
Iris Gabriela sorriu, ela estava
adorando tudo aqui, e todas as palavras que ela me disse só me serviu para
acreditar em tudo o que Lúcio contou.
Ela era travessa, sem total dissentimento,
fria e calculista em cada ato.
Iris Gabriela saiu caminhando em
direção a saída com o seu vestido preto longo, luvas pretas até os cotovelos,
um chapéu com um delicado véu caindo sobre os olhos. Ela olhou para trás e
acenou. Era isso o que ela fazia, intimidação.
Cheguei na mansão Laguna decidido,
estava pronto para qualquer que fosse o próximo passo dela, a raiva que sentia
já havia ultrapassado a dor, era mais forte do que eu. Ela tinha que pagar por
tudo.
Entrei pela porta principal e já subi
as escadas, estava pronto para a minha próxima onda, e podia ser um tsunami,
estava pronto para passar por ele.
Abri a porta do meu quarto e lá
estava Tia Ingrid sentada na poltrona próxima a lareira acesa que aquecia o
quarto tomado pelo branco.
– Feche a porta – ela disse e eu o
fiz me aproximando, toda a confiança não existia mais – eu não sei o que você
está pensando, eu só quero entender essa sua ideia – continuei em silencio
encarando-a – vamos, Fábio, diga alguma coisa.
Ela se levantou e colocou-se na minha
frente.
Continuei em silencio, abaixei a cabeça,
não conseguia mais encara-la, seu olhar parecia me esfaquear a cada piscadela
que ela dava.
– Por que colocou este rapaz aqui
dentro? – Ela finalmente perguntou o que estava pensando o tempo todo.
Olhei em seus olhos novamente,
precisava responde-la, mas também precisa saber como responder a isso, não
podia simplesmente dizer todas as palavras que tagarelava na minha cabeça.
– A forma como você fala, como agiu e
está agindo neste momento, parece que sabe de algo que eu não sei. Acho que é
você quem precisa dizer alguma coisa.
As palavras saíram da minha boca com
medo, porem com clareza. Sei que não devia confronta-la, não ali, não agora,
mas foi assim que saiu da minha boca e eu não podia voltar atrás.
– Não sou eu quem deve explicações
aqui – ela disse me apunhalando novamente com seu olhar – sinto muito pela sua
perda, essa semana turbulenta, mas esse garoto carrega muitos problemas e eu
não quero que você se machuque, eu não sei o que faria se algo lhe acontecesse –
ela deu um passo à frente e eu por reflexo fechei os olhos e me recolhi – não quero
que sinta medo de mim.
Abri os olhos e ela me abraçou forte
como uma mãe protetora, de certa forma, era a minha mãe, aquilo o que eu tinha
mais próximo de amor materno.
– Não vou me machucar, mas sei que
ele precisa de ajuda.
– Essa guerra não é sua, Fábio – ele olhou
nos meus olhos e segurou meu rosto com a ponta de seus dedos gordinhos – não lute
por algo que não lhe pertence.
Ela sabia de algo e ela disse isso.
– Se você me contasse o que sabe,
talvez eu estivesse pronto para o que está por vir.
– Sente-se – eu o fiz, sentando-me na
cama – sei que Iris Gabriela está envolvida, e por isso você não deve se
envolver.
– Mas ela não era amiga da família a
tantos anos?
– Não existe amizade na nossa família,
lutamos para chegar e garantir a nossa posição na cidade, é por isso que as empresas
com o seu sobrenome comandam Nova Iorque, por que seu avô começou está luta
nela, fizemos coisas irreversíveis, tivemos que nos aliar a ações contraditórias,
e é por isso mesmo que você logo assumirá o seu verdadeiro papel dentro da
empresa.
– Enquanto isso lutarei de olhos
vendados? – Perguntei desta vez com um pouco mais de confiança.
Percebi que Tia Ingrid estava
escondendo algo, algo que vinha de muito tempo atrás, e ela não podia me
contar, não naquele momento.
– Por enquanto evite lutas, conheça
primeiro o seu inimigo. E quando realmente estiver preparado tiro sua venda –
ela disse, e finalizou caminhando em direção a porta – farei uma visita ao
Senhor e Senhora Carlos, de lá mesmo irei viajar, os negócios não param.
– Qual é o seu destino desta vez? –
Perguntei quando ela abriu a porta para sair do quarto.
– Alabama, temos alguns negócios para
fechar por lá, conclui que seu depoimento foi o suficiente para o detetive, mas
haverá um advogado a sua disposição, caso precise.
Tia Ingrid saiu do quarto fechando a
porta. Ela partiu deixando muitas coisas para eu pensar, muitas coisas vieram e
foram embora. Não entendi direito muitas palavras e outras frases se perderam
no meio do caminho.
Mas eu sabia examine qual era o meu próximo
passo, precisava conhecer o meu inimigo, entende-lo, e então estar preparado
para qualquer que fosse a retaliação.
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