Now Or Never - O Desetor

O Desertor
Quando deitei na cama ao lado da mulher que estava disposta a me entregar a forca não consegui fechar os olhos para dormir. Não consegui fazer isso durante a noite toda, quando cansei de ficar deitado na cama olhando para o teto branco no escuro levantei e sai do quarto.
Era impossível não olhar para o rosto dela e pensar como ela, minha Selena podia pensar em tal ato de traição, essa não era ela. A guerra muda as pessoas, mas apenas as pessoas que estiveram nela. Selena nunca esteve em um campo de batalha a não ser enquanto estava na casa de seus pais que estava sempre brigando por seus patrimônios durante o difícil divórcio. Mas essa era a única que ela conhecia como guerra.
Fechei a porta atrás de mim e arrumei o roupão fechando-o para não ser atacado pelo ar frio do lado de fora. A grama estava úmida e mais verde naquela manhã. O sol nascia iluminando toda a Fortaleza aos poucos. Cruzei os braços e comecei a caminhar pela rua. Minhas pernas estavam arrepiadas com o frio, já estava acostumado com aquela temperatura pela manhã, não só naquele horário, uma das coisas mais gostosa da Alemanha era seu clima frio e úmido, com o tempo o ar foi ficando mais denso e só ficou frio mesmo.
Dobrei a esquina olhando todas aquelas casas iguais, isso realmente me incomodava em tanto. Minha cabeça estava a mil, minha respiração estava ofegante e eu precisava gritar o mais alto possível só para sentir aquela sensação maravilhosa de alivio passar pelo meu corpo. Atravessei a rua e vi o motorista que havia me trazido do aeroporto até em casa no dia anterior encostado no carro preto.
“Bom dia”, disse educadamente, “Será que você pode me fazer um favor?”. Ele assentiu, “Pode me levar a um lugar depois do portão”.
Ele deu a volta no carro alto e grande e entrou. Abri a porta de trás e entrei. Ele engatou e com um solavanco brusco o carro começou a andar. Logo estávamos fora do limite do lado colorido de gramado verde, passamos pela guilhotina e a forca na praça, tentei não olhar para aquele lado cinza, me deixava triste o modo calamitoso que aqueles seres humanos viviam. O carro acelerou em uma linha reta e parou diante dos portões do aeroporto. Pedi para que o homem me esperasse e ele permaneceu em silencio e apenas assentiu.
Talvez ele fosse mudo.
Talvez quando me dava aqueles olhares no dia anterior estivesse apenas concordando de uma forma não tão clara assim. Ou talvez só não queria dirigir a palavra a mim.
Sai do carro e caminhei em direção ao segurança que estava parado na frente do portão de aço que dava três da minha altura.
“Bom dia”, disse com um sorriso, “Ontem, depois que fui atendido no ambulatório acabei esquecendo um item muito importante...”.
Ele me encarou e apertou o controle remoto que estava na porta de seus dedos abrindo o portão sem mesmo esperar eu terminar de contar a minha mentira.
Entrei na área do aeroporto e virei para trás observando o portão se fechar remotamente.
Caminhei em direção ao prédio de tijolos cinza de dois andares.
Uma faixa branca com uma cruz vermelha simbolizava que ali era feito os atendimentos médicos. Bati duas vezes na porta e a Senhora Alba abriu a porta.
Seu rosto estava avermelhado e ela enxugava suas lagrimas em um pedaço de pano encardido.
Ela me olhou nos olhos e caiu em meus braços em desespero chorando.
Eu a abracei imediatamente, seja lá o tivesse acontecido ela estava precisando de um abraço, e em momentos como aquele não queremos ouvir nada, queremos apenas nos sentir seguros e acredito que ela se sentiu assim quando se desfez em lagrimas.
A guiei para dentro do ambulatório e fechei a porta de madeira escura, fiz com que ela me olhasse nos olhos mesmo com relutância.
“Thomaz retornou, Senhor, meu filho retornou”. Começou a dizer entre o choro. Eu a abracei mais forte e ela encostou sua cabeça em meu peito.
“Aonde está o jovem soldado?”. Perguntei quando ela se desembaraçou de meus braços.
“Ele está a caminho da forca, ele é um Desertor”, ela disse me olhando nos olhos, não soube o que dizer, não consegui dizer nada apenas a puxei para mais perto confortando seu sofrimento da única forma que estava conseguindo fazer. “Eles não falaram nada sobre Thiago, apenas que está vindo com um outro grupo, mas não me deram nenhuma outra informação”.
Ela se afastou enxugando o rosto virando para a janela que dava vista para a pista de pouso.
“Sinto muito por Thomaz, Senhora Alba”, tentei dizer algo mais, mas minha boca estava tremula e meus pensamentos distantes.
Porque não mataram ele em campo de batalha? Porque traze-lo para casa vivo e dar o sofrimento a mãe de vê-lo sendo enforcado. Era algum tipo de amostra do que acontece com quem é desertor. Nenhuma mãe merecia ver aquilo.
“Implorei para vê-lo, Senhor, e eles permitiram. Tenho que ir, disseram que vão”, ela fez uma pausa e fechou os olhos, pude sentir sua árdua dor e pesar em suas palavras, “executa-lo em quarenta minutos”.
Ela me olhou e sorriu, Alba segurou minhas mãos e abriu ainda mais seu sorriso.
“O Senhor não é como os outros, o Senhor tem um coração bom, é um bom homem”, ela assentiu concordando com suas próprias palavras, “Tenho certeza de que não veio aqui para ouvir minhas lamentações, Senhor”.
“Nem mesmo eu sei porque vim aqui, Senhora Alba, acredito que o destino me enviou para acompanha-la nesta página triste de sua vida”.
“Agradecerei aos céus por isso, jovem”. Ela caminhou até o mancebo de madeira que estava no canto da sala que era como uma sala de espera e pegou um casaco de lã de cor palha.
“Irei com a Senhora vê-lo, tenho certeza de que me deixarão entrar”. Disse depois de tomar a decisão mentalmente.
Segurei na mão de Alba e cruzei meu braço ao dela entrelaçando-os, saímos do prédio lado a lado e caminhamos em direção ao portão alto que se abriu.
Assenti em um cumprimento simpático para os guardas a postos. O motorista uniformizado com um terno me encarou de forma espantosa como se não esperasse ver um homem de uma alçada a companhia de uma mera enfermeira de idade.
“Por favor, leve-nos ao prédio aonde ficam os detentos”.
Disse colocando a Senhora Alba dentro do carro. O motorista rapidamente entrou encarando o estado emocional de Alba. Ele engatou o carro com rispidez e o acelerou em linha reta até a frente dos portões do lado nobre da Fortaleza.
Ele estacionou o carro na frente do prédio onde a faixada era a única com uma faixa escrita Quartel Máximo.
Desci do carro e ajudei Alba que já estava aos prantos de tanto chorar, suas mãos estavam frias e suadas, seu rosto de pele sofrida estava avermelhado e úmido de forma que quem a visse pensaria que ela estava prestes a morrer.
O que de certa forma estava acontecendo. Ela estava a caminho de assistir a morte do filho, seu primogênito como disse quando estávamos a caminho dali.
Assenti para que o motorista esperasse e ele não fez perguntas, apenas assentiu de volta.
Entramos no prédio, o Oficial Hamous nos encarou de imediato.
“Em que posso ajuda-los?”. Ele perguntou se colocando a frente de uma mesa de madeira.
“Oficial Hamous, sou o Soldado Daniel Endlen, estou aqui para acompanhar a visita da Senhora Alba como amigo da família Alba”.
Hamous assentiu calado tácito com a cabeça concordando. Ele se virou e passou o cartão magnético na trava do portão de grade de ferro. A Senhora Alba caminhou na minha frente pelo comprido corredor imune de luz solar até a outra grada, um outro Soldado me olhou de trás dela e eu assenti para que ele abrisse. Ele o fez e entramos.
O jovem Thomaz estava sentado de cabeça baixa em um banco de madeira. Suas pernas estavam acorrentadas ao banco.
“Querido”, começou a Senhora Alba ao tentar se aproximar e ser impedida pelo braço longo do Soldado que se esticou para barrar sua passagem para perto de seu filho.
“Deixe-os, por favor”.
O Soldado recolheu o braço e ela caiu de joelhos abraçando o jovem que já havia sido açoitado anteriormente. Ele gemeu com o toque de sua mãe sentindo dor nas feridas que sangravam em suas costas sangrentas.
“Meu filho, o que fizeram com você, Thomaz”, a Senhora Alba lastimou em lagrimas.
Ela recolheu seus braços e olhou para suas mãos sujas pelo sangue vermelho escarlate e pôs-se a chorar ainda mais.
“Senhora Alba, creio que tenha pouco tempo”, disse apressando-a depois de receber o olhar do Soldado presente na sala que nos observava atentamente.
“Estou bem, mãe, fico feliz de não ter de voltar para lá”, começou o jovem com a voz fraca e baixa, “vi coisas mãe que são impossíveis de esquecer”.
Ele estremeceu ao lembrar das terríveis cenas vistas por seus olhos lacrimosos.
“Depois que alguns territoriais me torturaram...”. Ele fez uma pausa para as lembranças deixarem sua mente juntar uma frase completa, “Depois disso, pedi para o Comandante meu esquivo da guerra, ele não permitiu, disse que a missão teria de ser cumprida”. Thomaz fechou os olhos como se estivesse vivendo o momento novamente. “Eu não pude, mamãe, não consegui. E quando me perdi de meu irmão não vi outra alternativa a não ser a fuga”.
“Como se perdeu de seu irmão?”.
“Em campo, mamãe, pensei que os territoriais tivessem matado ele”.
“Ele está a caminho”, disse a Senhora Alba olhando nos olhos de Thomaz, “Filho”, ela colocou a mão no rosto do jovem acariciando-o, “eu sinto muito, não consigo fazer nada”, ela voltou a chorar entre as palavras engasgando-se em soluços, “eu te amo, querido”.
“Acabou o tempo, Senhor Endlen”, gritou o Oficial Hamous do outro lado do corredor.
“Posso lhe dar um último abraço, Senhor?”. Perguntou a Senhora Alba olhando nos olhos do Soldado que estava quase a chorar.
O Soldado presente assentiu e ela abraçou o filho que por mais que doesse seus ferimentos permaneceu firme nos braços da mãe ajoelhada.
Senhora Alba se levantou e segurou firme em minha mão apertando-a.
“Mamãe”, chamou Thomaz fazendo-a olhar para ele, “Quando chegar a hora, por favor, não olhe”. Ele falou e voltou a abaixar a cabeça.
Segurei a Senhora Alba nos braços guiando-a pelo corredor, ouvi a grade bater sendo trancada atrás de nós. Senti o sol arder em minha pele e meus olhos arderem quando chegamos no lado de fora do prédio.
A Senhora Alba olhou novamente para suas mãos encarando o sangue frio na ponta de seus dedos calejados.
O motorista ficou nos olhando em silencio parecendo entender toda a situação.
“Preciso de um momento, Senhor”. Disse a Senhora Alba se soltando de meus braços e caminhando para o outro lado da rua chegando a praça.
Me aproximei do motorista que não parava de observa-la.
“O que a fez ficar tão abalada?”. Ele perguntou sem tirar os olhos do outro lado da rua.
“O filho foi condenado a forca, ele foi um desertor”, fiquei ali parado olhando a Senhora Alba que se sentou em um banco fitando a forca de madeira montada no centro da praça aonde até mesmo o gramado era queimado e cinzento.
Os minutos foram passando e não consegui me mover para chegar ao seu lado, minha mente estava distante ao mesmo tempo que olhava o sofrimento que a assolava.
O que Selena estava na cabeça, pensei, contar ao Fuzileiro, estimar que algo estaria acontecendo entre eu e outro homem era a maior prova de imprudência de seus atos.
O que passava em sua mente, por que desconfiar de minha fidelidade de tal forma, o que a fizera pensar que eu poderia trai-la com outro homem. Nunca lhe dei motivos para ela acreditar que não a amava, de forma alguma lhe causei essa impressão. Sempre estive ao seu lado, pelo menos antes da guerra nos afastar, mas mesmo assim, não me lembro de ter lhe dado motivos para que ela queria me ver amarrado pelo pescoço com uma corda.
Thomaz passou ao meu lado acompanhado pelos dois Soldados em uma fila reta. Ele estava descalço e vestia apenas uma calça em um tom encardido. Corri para alcançalos. A Senhora Alba só percebeu que estava prestes a acontecer quando me aproximei e a abracei forte, ela estava precisando muito daquilo.
A mulher estava com os olhos inchado e vermelhos de tanto chorar, ela chorou mais ainda quando Thomaz subiu no alto da estrutura da forca.
Logo toda a praça foi tomada por moradores daquele lado, curiosos de olhos atentos como se estivessem acostumados aquela rotina.
“Hoje, fora condenado a forca pelo crime de Desertar da Guerra, Thomaz Alba de vinte e sete anos, filho de Afrodite Alba e Robert Alba”. Começou o Oficial Hamous, “Que seu castigo seja um lembrete do que acontece com os covardes que fogem da luta”.
Hamous olhou para o Soldado que estava ao lado de Thomaz e assentiu.
O Soldado fez com que Thomaz abaixasse a cabeça e lhe colocou a corda em seu pescoço.
O Oficial Hamous desceu pela escada de acesso e segurou a alavanca do lado esquerdo olhando com fogo de prazer nos olhos nos rostos de cada morador como se estivesse em jubilo por dentro de seu espirito.
Ele levantou a cabeça uma última vez para encarar Thomaz e puxou a alavanca que abriu um buraco abaixo dos pés de Thomas que suspendeu seu corpo no ar ficando pendurado com a corda sufocando-o apertando se pescoço.
Puxei a cabeça da Senhora Alba para que ela não visse, mas não consegui fechar os olhos, não pude deixar de ver mesmo que tentasse reprimir com todas as minhas forças.
Thomaz estava se titubeando no ar, tendo espasmos de dor enquanto a morte não lhe arrancava dali. Seu corpo saltava pendurado pela corda e de sua boca saiu vomito espumante. Todos pareceram ficar surpresos com a cena tentando tapar os olhos com as mãos, mas mesmo que tentassem era possível ouvir o bater do corpo. A Senhora Alba tentou se soltar de meus braços que segurava sua cabeça, mas a impedi protegendo-a de ver aquela lastimável cena.
Para finalizar o Soldado desceu a escada e deu a volta na estrutura, ele agarrou as pernas de Thomaz e o puxou com um solavanco abrupto para baixo quebrando seu pescoço.
Meu corpo reagiu ao meu comando e eu consegui fechar os olhos. Mas a imagem do pescoço quebrando-se se repetia de trás para frente em um relance continuo.
Não deixei que a Senhora Alba visse seu filho pendurado e a tirei da praça sem que ela olhasse para trás. Eu a coloquei no carro e pedi para que o motorista fosse voraz ao nos levar ao aeroporto.
Não consegui dizer nada, fiquei em silencio quando entrei no ambulatório e a deixei lá. O que deveria falar, deveria dizer o quando me sentia sorumbático por ela ter perdido o filho? Não mesmo, fiquei em silencio até mesmo quando voltei para casa.

Selena pareceu estar preocupada enquanto perguntava sem parar seguindo-me até o quarto, mas não podia nem a ouvir, pois ela também havia me decepcionado na noite anterior. Fechei a porta deixando-a do lado de fora do quarto. Deitei na cama e fechei os olhos reavivando a imagem do jovem relutante a morte, mal podia imaginar seu sofrimento antes de tê-la.

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