Aquele que partiu - Não sou a mesma

Não sou a mesma

Quando acordo ele está lá, meu marido, aquele com quem me casei, não vou mentir, eu o amo e não é à toa que estamos juntos a trinta e dois anos. Ele me entende e eu o entendo, sei que ele me ama mesmo com todas as minhas loucuras. Mas não é a mesma coisa.
Eu o encarei nos olhos e fiquei me perguntando em silencio, por quanto tempo ele estava me olhando dormir?
“Eu te amo”, disse ele com um sorriso bobo no rosto. Eu sorri e levei minha mão até seu rosto acariciando-o, “Está se sentindo melhor?”.
“Sim”, respondi me virando para levantar da cama, “Há que horas você veio dormir?”.
“Não muito tarde, eu sabia que você precisava ficar sozinha por um tempo, não quis apressar as coisas”.
Como eu disse, ele me entendia em todos os meus momentos.
“Obrigado”, puxei o vestido deixando-o no chão. Caminhei até o banheiro que ficava depois do closet, fechei a porta e fiquei me encarando no espelho em cima da pia de louça branca.
Sorri, meus dentes não eram mais brancos como o leite, estavam um pouco amarelados. É o tempo. Meu rosto estava enrugado e minha pele flácida. Eu não era mais aquela jovem das minhas lembranças e nem a de meu sonho da noite passada. Eu tentei não represar minhas memorias, mas é impossível em semanas como esta. Eu deveria estar comemorando, mas muito pelo contrário estava me martirizando olhando para o espelho encarando o meu reflexo.
E lá estava eu, eu aos 22, me olhando no espelho do banheiro do pequeno apartamento alugado, o banheiro tinha azulejos escuros, misturando a um tom palha, o box era improvisado por uma cortina de plástico que escondia a banheira encardida. Eu, bom, estava descalça usando apenas calcinha branca e sutiã preto, tinha acabado de acordar e fiz um esforço para não fazer barulho e não acordar Tate que ainda dormia na cama do outro lado da porta de carvalho que estava fechada.
Me aproximei um pouco mais do espelho e tive um arrependimento súbito de ter comido as pequenas trufas de chocolate na festa da noite passada, estava começando a aparecer uma pequena espinha próximo a minha sobrancelha, revirei os olhos e me contorci um pouco para tirar o sutiã. Tirei a calcinha e os deixei de lado. Entrei debaixo da ducha com ela fria. Eu gostava de banhos frios, até mesmo pela manhã, é despertador a forma como a água fria bate na pele quente. E também acreditava que tomar banho frio deixaria minha pele mais jovem quando chegasse aos cinquenta anos. É, eu estava errada.
Amava o meu corpo e cuidava muito bem, passando loções corporais e hidratantes, minha pele era macia como a seda.
Como eu daria tudo para ter aquela pele novamente e aquele homem que ainda dormia.

“Querida, vou resolver algumas coisas na cidade agora pela manhã”, disse meu marido, arrumando a gravata enquanto eu me sentava a pequena mesa na cozinha, gostava de tomar café da manhã na cozinha, Mércia era a cozinheira e governanta da casa, ela ajudava demais, sempre ajudou, ela serviu um pedaço de torna em um prato para meu marido e serviu panquecas acompanhadas de mel puro no meu prato.
Adorava ver a forma rápida e habilidosa que Mércia se movia enquanto fazia as coisas, sempre tive um pouco de inveja. Inveja boa. Eu era e ainda sou desastrada, lembro de sair do banho me enrolar na toalha, lembro de abrir a porta do quarto e sorrir ao ver Tate ainda deitado, ele estava em um sono tão profundo. Era até lindo de se ver.
No terceiro passo que dei para dentro do quarto eu tropecei em um chinelo e cai em cima da cama acordando-o com um susto.
Dei risada, tentei me conter para não rir, meu marido me encarou surpreso e só então percebi que ele estava falando algo.
“Me perdoe meu amor, escolhi o pior momento para rir”.
“Sim, escolheu, estava falando sobre Charlote estar doente, eu não sei o que vou fazer no escritório sem ela”.
“Sinto muito, por ela”.
Disse contraindo os lábios para não dar risada novamente.
“A Senhora está bem?”. Perguntou Mércia servindo o suco de laranja em dois copos grandes.
“Estou ótima, Mércia”. Respondi depois de receber um olhar furioso de meu marido, ele se levantou sem tocar no pedaço de torta e saiu. Eu o ouvi bater à porta e acelerar o carro.
“Ele não está”, comentou Mércia.
Dei um breve sorriso e concordei com a cabeça. O meu estado mental as vezes incomodava meu marido, era de praxe ele se isolar, tinha certeza de que não havia nada a se resolver na cidade, ele precisava apenas de um tempo para não explodir perto de mim.
Vi nele basicamente o que via em Tate, ele era explosivo e cheio de sentimentos.
Isso me faz lembrar de quando recebi uma visita no meu antigo apartamento.
“Violet, quanto tempo”, disse Diogo Marselhês se aproximando para um abraço amigável.
Éramos amigos desde o colégio, ou quando comecei a ir ao colégio. Diogo se transformou em um melhor amigo maravilhoso. Ele tinha seus tributos em beleza.
Ele era alto de cabelos longos loiros, tinha os olhos verdes e os lábios cheios, seu rosto parecia ter sido esculpido em pedra, sua mandíbula era torneada e isso deixava seu sorriso ainda mais bonito. Ele se vestia como um modelo de moda de inverno, ele gostava de cachecóis e blusas de manga longa. A gola da camisa sempre por cima da gola da blusa, seu jeans era apertado deixando suas pernas musculosas pouco marcadas. Ele segurava seu casaco grande em uma das mãos e só o percebi quando me soltou do abraço.
“Fui a sua casa, mas sua mãe disse que você estaria aqui”, ele explicou tirando o cachecol azul claro do pescoço, “Que diabos você faz neste fim de mundo, Violet?”.
Sorri e fechei a porta fazendo com que ele entrasse.
“Isso explica como me encontrou”, disse referindo-se a minha Mãe, “Decidi dar um tempo de todos os compromissos dos meus pais, estava cansada de fingir sorrisos e de gostar de algumas pessoas que cercam o dinheiro da família”.
“Sua mãe disse que você foi egoísta”, ele retrucou fazendo-me lembrar de que era desta forma mesmo que minha mãe pensou quando sai de casa.
Não acreditava que isso era egoísmo, eu não estava feliz vivendo em uma casa grande, cheia de pessoas nas quais eu não confiava, vivia presa em meu quarto e quando saia era para eventos aonde minha mãe me apresentava para cavaleiro que não eram tão cordiais assim.
“Às vezes temos de ser egoísta”, disse tirando o sorriso do rosto, “Mas me conte o que te fez me procurar, depois de tanto tempo?”.
Disse caminhando em direção a cama, ele se sentou na ponta da cama e eu fiquei parada pronta para me sentar na cadeira de madeira.
“Tantas coisas, em primeiro lugar, por que tem roupas masculinas naquele canto?”.
Ele reparou, Diogo sempre foi uma pessoa que olha todos os detalhes de um ambiente, ele dizia que isso era o seu mal de escritor, já que em seus contos ele detalhava tudo o que estava ao redor do personagem.
“Estou ficando com um cara”, disse e continuei, “Na verdade, estamos noivos”.
Diogo saltou da cama quando estiquei a mão para frente mostrando a aliança no meu dedo. Sua reação foi: colocar a mão na boca e dizer ‘ai meu Deus’.
“Não acredito, sua mãe não falou nada disso, olha que ela falou demais”.
“Eles não sabem e nem vão saber, vou apenas enviar o convite de casamento no dia do evento assim eles não vão ter tempo de estragar tudo”.
Ele segurou a minha mão examinando a joia com atenção. Seu toque era frio e enquanto seus dedos deslizavam pela minha mão a porta se abriu, ele me puxou me abraçando novamente com um susto súbito.
“Estou tão feliz por você”.
Aquilo era verdade, ele estava feliz pela minha felicidade, afinal eu iria me casar.
“Olá”, disse Tate parado na porta.
Diogo me soltou e caminhou até ele estendendo a mão para um cumprimento.
“Meu nome é Diogo, desculpe-me invadir assim o seu espaço, sou um amigo antigo de Violet e estou muito feliz por vocês dois”.
“Oi amor”, disse com um sorriso envergonhado, Diogo era a primeira pessoa que Tate conhecia do meu passado e que talvez não devesse ter conhecido.
Tate caminhou até a pia do outro lado da sala deixando as sacolas em cima da pedra de mármore, ele ignorou completamente o gesto de cumprimento que Diogo ainda estava fazendo.
O jovem recolheu a mão e caminhou até mim.
“Tenho de ir, mas vou esperar o meu convite” eu ia fazer com ele o mesmo que ia fazer com os meus pais, “estou muito feliz de ter conhecido você Tate, embora por um curto tempo”, ele voltou a me encarar e me abraçou novamente, “Obrigado por não ter batido a porta na minha cara, você sabe que eu te amo muito, Violet e te desejo toda a felicidade do mundo”.
Diogo pegou seu casaco preto e o cachecol azul claro de cima da cama e saiu fechando a porta.
“O que foi isso?”. Perguntei andando apressadamente na direção de Tate.
“Não sei, me diz você, não era eu quem estava abraçado com outra pessoa aqui dentro”. Ele fez uma pausa e continuou, “Um antigo amigo ou um antigo namorado?”.
“Você escutou o que ele disse, ele é um amigo, um velho amigo que me encontrou, não vejo nenhum problema em abraçar amigos, isso se chama afeto e você não deve ter já que recusou seu cumprimento amigável”.
Tate ficou me encarando por uns segundos, seu queixo tremia, eu sabia que ele estava tentando conter algumas palavras em sua boca e ele sabia que não devia dize-las.
“Tudo bem”, eu preciso resolver algumas coisas na cidade, vou voltar tarde”. Ele passou com passos apressados na minha frente e não se despediu como de costume. Ele sempre me dava um beijo singelo na testa antes de sair. Eu fechei os olhos e ele bateu a porta com força. Ele estava furioso e eu estava irritada por essa reação inesperada.

Enxuguei as lagrimas em meu rosto, Mércia não estava mais na cozinha quando abri os olhos, levantei e caminhei até a escada que levava para o porão, eu abri a porta e desci os degraus com passos lentos, puxei uma cordinha acendendo a luz que iluminou a imagem de Tate.
“Não foi culpa minha, Tate”, disse em voz alta encarando a pintura que me encarava com seus olhos azuis, “Não foi culpa minha, Tate”.
Fechei os olhos reprimindo tudo o que estava no meu peito, a dor, eu ainda sentia aquela dor. Sabe quando você tem um brinquedo favorito e esquece ele quando vai viajar, você sente sua falta, você sente a dor de estar longe daquilo que você ama, então você chega em casa e reencontra este brinquedo e sente aquela sensação maravilhosa dentro de seu peito e tudo o que você faz é abraçar este brinquedo.
É uma analogia estranha para um amor como o que eu sinto por Tate, mas é basicamente isso, e seu rosto pintado a tinta óleo é a minha lembrança dele. O quadro e...
Olhei para o pequeno porta-joias ao lado da pintura, eu o peguei e o abri encarando a minha antiga aliança. Eu sei que está na hora.
Entendo que preciso parar com isso, meu marido me disse diversas vezes que não é saldável ficar se martirizando por algo como assim. Mas é tão difícil que não tem como esquecer.
Não chore
Pensei imaginando o meu eu de 22 anos dizendo isso para mim. E eu conseguia me ver, conseguia me ver com o cabelo escuro todo repicado, o rosto estava sujo de rímel que havia escorrido devido a noite toda que havia chorado. Mas eu não era mais aquela garota.
As coisas que aconteceram me deixaram forte, não é qualquer coisa que me abala, não mesmo. Tenho apenas um ponto fraco e isso não posse negar. Quando se trata de Tate meu coração aperta e eu sinto dor de estomago, ele foi e sempre será o amor da minha vida.
Coloquei a aliança em meu dedo anelar e com a mão direita toquei o rosto desenhado na pintura.
Foi em agosto, três meses antes do acontecido, estava usando um vestido rodado cor de pêssego, ele marcava a minha cintura e levantava os meus seios, me encarei na frente do espelho de moldura de madeira contorcida e depois encarei a grinalda em cima da cama, eu a peguei e coloquei na minha cabeça. Era daquele jeito que eu queria.
Tate saiu do banheiro usando um terno de lapela branca, não era a primeira vez que eu o vi usando terno, mas era uma noite especial.
“Você está perfeita”, ele disse me encarando com seus olhos azuis como o mar.
“Você também”, ele se aproximou e me beijou puxando o meu corpo contra o dele pela minha cintura.
Depois de ter se controlado descemos as escadas cantarolando YOU MAKE ME FEEL LIKE DANCING.
Tenho certeza de que estávamos incomodando os vizinhos, não cantávamos tão bem quanto pensávamos e pior ainda quando imitávamos o tom de voz de Leo Sayer.
Entramos em seu Mustang...
Escutei a porta do porão se abrir, os passos na escada eram lentos e logo meu marido surgiu de cabeça baixa sem conseguir me encarar nos olhos.
“Você sabe que eu te amo, Violet”, ele começou, levantou a cabeça me olhando nos olhos e continuou, “Mas há cada ano isto tem sido mais difícil para mim”.
“Eu sinto muito”.
“Não precisa sentir muito, Violet”, ele disse com os olhos começando a encher de lagrimas, “Não é isso que quero de você. Eu quero que você seja feliz foi o que prometemos quando nos casamos”.
“Eu serei a sua garota e seremos nós contra o mundo”, repeti os meus votos com os olhos marejados.
Ele se aproximou e segurou as minhas mãos enrugadas.
“Você está bem?”. Ele perguntou.
“Sim, eu estou”.
“Você quer se despedir?”. Ele perguntou o que vinha perguntando durante anos, eu devia isto, uma despedida, mas com o passar do tempo nunca fui capaz de fazer.
“Eu não sei se estou pronta, eu não sei se vou conseguir”, disse abraçando-o.
“Você sabe que eu te amo, vou sempre estar do seu lado, seremos nós contra o mundo, não é”.
“Iremos amanhã”, disse confiante, “só preciso de mais um tempo sozinha e iremos amanhã, eu preciso fazer isso, já se passou quarenta anos e eu não consegui, mas eu preciso fazer isso”.
“Você terá o tempo que precisar, quando estiver pronta, estarei pronto”.
“Eu te amo, Diogo, eu te amo”.

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