Em Minha Mente - Abandono

Abandono 3
Lembro de estar deitado no chão da cozinha, lembro da cortina se chicoteando com o vento que passava pela janela, um vento forte que também fazia os galos do salgueiro de frente a casa balançar seus galhos de modo que ele batesse no telhado. Lembro que tentei me levantar, mas senti uma dor pontiaguda na perna e no peito, senti frio e desespero, aonde havia dor estava queimando como se alguém tivesse ateado fogo em meu corpo. Isso só se repetia, uma repetição sem fim.
E tudo ia acontecendo na mesma sequência, de forma lenta e dolorosa. E vigésima terceira vez que aquela cena se repetiu – a cortina branca, os galhos do salgueiro, eu tentando me levantar e a dor intensa – consegui me lembrar, de alguma forma tudo se encaixou como uma repleta conexão. Estava sentindo as mesmas coisas que meu pai sentiu na hora de sua morte. E só então escutei a minha própria voz chamando por ele, uma voz que ecoava até meus ouvidos, em um repetir que começava alto e o seu volume ia diminuindo.

Abri meus olhos, conseguia ver tudo embaçado, a luz basicamente me cegou por alguns segundos, dei várias piscadelas antes de conseguir focalizar minha visão turva. Meus ouvidos zumbiam agudamente, já não sentia a mesma dor do meu pesadelo, mas sim uma dor geral, tentei abrir a boca para chamar alguém, mas uma mão pousando em meu peito me impediu fazendo-me assustar. Meu corpo se contraiu por impulso e a cabeça de Miguel tampou a luz que vinha do teto diretamente para os meus olhos.
– Eu nem acredito que você acordou – foi a primeira coisa que consegui ouvir entre seu choro, na verdade foi a única coisa que consegui entender.
Ele acariciava minha mão freneticamente enquanto gritava desesperado entre o choro por alguém, um nome indecifrável.
O zumbido em meus ouvidos pararam no mesmo momento que escutei uma porta se abrindo, não sabia aonde exatamente está porta estava, mas sabia que era a do local aonde acordei. Um homem se colocou no lugar de Miguel que se afastou limpando o rosto. Ele fez algumas perguntas e com dificuldade assenti para todos o que significava que estava bem e que o pior já havia passado.
Minha visão começou a se duplicar assim que ele desapareceu do meu campo de visão. Meu corpo adormeceu e eu estava novamente apagado.

“Você sabe como aconteceu, você se lembra como veio parar aqui?”. Perguntou uma voz feminina, mas eu não a conhecia, não conseguia ver de quem era essa voz, estava em um lugar escuro, como em um vaco infinito, escutei o som de água caído, passos atrás de mim.
“Não eu não sei, por que estou aqui?”. Era a minha voz, era eu todo confuso, e agora, só agora estava conseguindo me enxergar, o que era bom de certa forma, mas ruim de outra, pois estava sentado um banco baixo azul, minhas pernas estavam balançando em um vai e vem controlado, isso só acontecia quando estava nervoso, eu me inclinei para frente tentando ver de quem pertencia a outra voz, tentando ver com que estava falando.
“Eu sei que meu pai está morto, e a culpa é minha”.

Acordei novamente, desta vez meu corpo estava um pouco inclinado na cama confortável, reconhecia o lugar, era meu quarto com a sua perfeita bagunça, alguns livros nas prateleiras, o notebook em cima da escrivaninha ao lado da porta, virei a cabeça para a direita e vi minha mãe sentada de olhos fechados, ela estava em um sono profundo e não tinha nem percebido meu despertar.
– Mãe – disse baixinho.
Ela acordou e me encarou com seus olhos avermelhados.
– Oi, querido – ela sorriu – que bom que você acordou, ficou indo e vindo durante as últimas semanas.
Últimas semanas, quanto tempo havia se passado, não conseguia distinguir, lembro de ter acordado, mas não me lembro de todas e nem sei se o que ela disse foi apenas ela exagerando as coisas como sempre fez.
– Quanto tempo? – Perguntei curioso e confuso desviando meu olhar assustado de seus olhos vermelhos.
– Quarenta e oito dias, está é a trigésima terceira vez que você acorda.
– Não sei se quero dormir novamente – disse impulsivo – o que aconteceu?
Minha mãe fechou o livro que estava em seu colo, só então percebi que ela estava lendo algo. Ela pegou seus óculos de leitura de cima do criado mudo e juntou-o com o livro levantando-se da cadeira que havia pegado da cozinha.
– Você não se lembra? – Ela perguntou como se estivesse indignada – Vou chamar o Doutor Collins.
Minha mãe saiu do quarto sem se importar em responder à pergunta. Fiquei olhando para o nada, estava tentando lembrar, eram muitas coisas para separar, coisas que não se pareciam nenhum pouco com a realidade, coisas que me fazia questionar se eu estava me tornando uma pessoa louca.
– Lorenzo Walker – lembro-me deste homem que entrou no quarto tirando-me de meu devaneio, era o mesmo Doutor que vi em um dos momentos que me lembrava – como está se sentindo?
– Aparentemente bem, não sinto dor, só um pouco de sede – olhei para as minhas mãos que estavam com algumas esfoliações – o que aconteceu? – Neste momento me preocupei, não me lembrava de ter feito algo que pudesse me machucar, sinto dizer que eu não lembrava de nada.
Minha mãe assentiu para o Doutor Collins e deu um passo para frente me encarando com os olhos penetrantes, ela estava com raiva e sua expressão disse isso.
– Os seus amigos disseram que você se jogou na frente de um ônibus, depois de gritar com sua professora, amiga e o garoto que disse que era seu namorado.
Sabe quando jogam água fria em seu rosto para você acordar de um desmaio, foi assim que me senti, molhado pela água fria em meu rosto, as memorias vieram como uma chicoteada nas costas, e só então todos os sentimentos voltaram, e todos eles de uma só vez.
O medo, o vazio, a raiva, a vontade de chorar, toda a confusão. Me senti um completo idiota, eu quis aquilo. Quis me machucar. Eu quis acabar com a minha vida.
– Doutor Collins – disse minha mãe – o Senhor poderia nos dar um minutinho a sós?
O Doutor assentiu concordando e saiu do quarto fechando a porta, minha mãe se aproximou e segurou firme e dolorosamente em meu braço, apertando-o para que pudesse sentir dor e medo, mais medo ainda do que já estava sentindo.
– Você deve agradecer a Deus, agradeça a Ele por te dar essa segunda chance, garoto, peça perdeu por ter sido um fracassado, como você pode pensar nisso, o que mais você quer na sua vida. Lorenzo não seja um idiota, você tem tudo o que eu posso te dar, mas se você tentar fazer isso novamente, se tentar tirar a sua própria vida de novo, não vou fazer nada, vou deixar você ir sem remorso algum.
Ela me soltou com um empurrão nervoso, não consegui conter minhas lagrimas, não consegui conter todos aqueles sentimentos embaralhados dentro de mim.
– Não tenho mais tempo para você, estou farta dos seus shows, estou farta das suas performances, não quero, na verdade – ela respirou fundo e fechou os olhos como se estivesse se punindo por dizer o que estava prestes a proferir – não aguento te ver, você faz essa pose de garoto perfeitinho, você mente, monta sua própria versão de sofrimento...
– Ele era o meu pai – gritei interrompendo-a.
– Ele era o meu marido – ela gritou, minha mãe fechou as mãos em punho e me encarou com seus olhos fuzilantes – eu o amava, não posso tê-lo agora, mas tenho você, não me faça desistir de você também - ela se virou e colocou a mão na maçaneta da porta – vou te colocar em um lugar que possa te ajudar com essas coisas que estão acontecendo com você.

Não posso dizer que estava no meu melhor momento, não posso dizer que estava feliz de estar dentro do carro sem dizer uma se quer palavra, seguindo pela Luther E. Gibson Fwy, entrando na Rodovia Marshview e depois na Rodovia Lopes.
Foram os trinta minutos mais longos de toda a minha vida.
Ela entrou em um estacionamento de frente a uma casa grande em um tom de pastel com detalhes nas janelas brancos.
Desci do carro e ela já estava pegando minha bagagem na mala do carro. Ela nem sequer me olhava, estava fazendo tudo da forma mais fria, ela planejou tudo, e deu início quando o Doutor Collins disse que estava tudo bem comigo.
Mesmo eu sabendo que não estava, na última semana acabei não fazendo minha visita a Valerie, mas ela ligou dizendo que apareceria a qualquer momento.
Isso me confortou, Valerie sabia para aonde estava indo.
O jardim na frente do muro que cercava o terreno era repleto de jacintos roxos, os cachos brotavam em meio as folhas verdes, cachos da flor rocha de seis pétalas que seguiam até o portão que colocado entre dois grandes pilares de pedra.
BENICIA CAMP REHAB, li em uma placa de madeira com as letras grande talhadas. Minha mãe apertou campainha eletrônica e um estralo sutil fez o portão se abrir. Entramos no terreno estranho, fiz uma breve pesquisa sobre aquele lugar, e acabei descobrindo que minha mãe realmente achava que estava ficando louco.
A porta de madeira da frente da casa em tom pastel se abriu revelando uma mulher alta trajada com um terno cinza feminino, seu cabelo com algumas mechas brancas estava preso em um coque e protegido por uma redinha, ela sorriu e me filmou com seus olhos verdes atentos a cada detalhe de meu corpo minúsculo e magricela. Ainda mais magro depois do ocorrido.
– Bom dia, Jovem Walker – ela disse estendendo a mão em um cumprimento educado, eu apartei sua mão com firmeza, mesmo que meu corpo tremia em sua presença – Senhora Walker – ela cumprimentou minha mãe da mesma forma – Por favor vamos entrar – ela deu espaço para que passássemos e pude ver o interior do local.
Era maior do que esperava, logo na entrada tinha uma escada lustrosa em meia lua que levava ao segundo andar, a minha direita havia poltronas e uma lareira de mármore branco que deixava o espaço ainda mais convidativo. A minha direita ficava o que parecia ser uma sala de jantar que estendia uma mesa longa com cadeiras de carvalho. O assoalho era de carvalho vermelho laminado e refletia minha imagem embaçada enquanto caminhava pela casa. A Sra. Thomaz, como se apresentou a Diretora da Clínica, explicou as regras básicas como o horário das refeições, de dormir e parque, mostrou a academia, biblioteca e me apresentou alguns funcionários a quem podia pedir ajuda caso precisasse.
Saímos do prédio e logo senti o ar quente na minha pele, o jardim dos fundos era ainda mais belo, próximo ao muro havia um pequeno lago rodeado de rosas, a minha flor favorita, tinha arvores grandes que faziam sombras nos brancos de madeira e vários chalés pequenos tipo suíço de madeira.
– Lorenzo, sua mãe insistiu em um quarto particular para você, então pedi para que arrumassem um dos nossos chalés, espero que goste – disse a Sra. Thomaz.
Ela se aproximou do penúltimo chalé próximo ao pequeno lago e destrancou a porta com uma chave dourada. Entrei no espaço enquanto ela e minha mãe conversavam.
Era pequeno como o meu quarto, tinha uma pequena janela ao lado da porta, abaixo da janela estava uma cama de solteiro e um criado-mudo, o assoalho era como o da casa, mas ainda mais brilhoso, havia um guarda-roupa ao lado de uma outra porta do outro lado do quarto, caminhei até ela e a abri, era um banheiro pequeno e aconchegante. O quarto todo parecia aconchegante, e aquele seria o meu refúgio, não queria saber se academia e nem biblioteca, tudo o que me importava era ficar sozinho naquele quarto, sem ter que ouvir ninguém.
–  O que achou do seu quarto? – Perguntou a Sra. Thomaz.
– É legal – foi a única coisa que disse, minha mãe acenou da porta antes de fecha-la.

Não esperava mais do que isso, não depois de todas as coisas que ela disse, desde aquela nossa conversa não trocávamos um simples bom dia, ela realmente não queria me ver, mas agora ela conseguiu o que queria, me afastar.

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