Aquele que partiu - Tinta a óleo
Tinta a óleo
Estavam todos ali. Batendo as palmas das mãos em um mesmo ritmo
cantarolando ‘parabéns para você’ enquanto eu estava sem jeito atrás da mesa do
bolo cor-de-rosa com um sorriso no rosto olhando para cada rosto presente. Meu
filho estava com sua pequenina nos braços incentivando-a a cantar, ela tinha
apenas três anos e lhe faltava dentes no sorriso divertido. Minha filha mais
nova estava contagiante cantando mais alto que todos, minha irmã estava
presente junto ao seu marido e três filhos. A esposa do meu filho mais velho
acabara de chegar começando a entrar no ritmo da música.
Melinda, minha filha não era casada, ela espera pelo seu amor sem
pressa e enquanto isso se forma na universidade, tenho certeza de que um dia
ela se tornará a melhor advogada criminal da Colômbia. Eu simplesmente amo a minha família. Tate
iniciou sua família cedo, casou-se com Adriana ainda na universidade de
engenharia, há três anos me deu a minha primeira netinha, Clara, agora ele
espera seu segundo filho, estou prestes a ser avó mais uma vez.
Com abraço fui puxada para os braços do meu marido. Ele me deu um
beijo e meu rosto corou ficando da cor do glace do bolo. Eu o abracei
retribuindo o carinho e ele novamente se aproveitou. A música acabou e todos
ficaram em silêncio me encarando com seus olhos brilhando.
Sou uma mulher de poucos amigos, mas os poucos que tenho estavam
presentes, Nádia e seu marido, Callie e seus filhos e Joshua e sua família. Era
uma tradição, os aniversariantes do dia tinham esta pequena homenagem, e eu
como a mãe de todos os presentes não podia estar menos do que emocionada.
Passei a mão no rosto limpando as lagrimas que escorreram durante a
musica.
“Mãe, por favor não chore”, disse meu filho Tate que deu sua filha nos
braços de Adriana e se aproximou para um abraço caloroso.
Não pude me conter, comemorar 63 anos de vida acontece apenas uma vez
na vida. E eu sempre quis viver até está idade. Era a minha idade de ouro,
aquela idade que você esperou chegar pela sua vida toda. Sempre disse para os
meus amigos mais íntimos que se eu chegasse nos sessenta e três anos de idade
com uma saúde excelente seria eternamente grata e feliz. E eu não tenho nada do
que reclamar. E sou grata por isso.
“Agradeço a todos por terem vindo”, comecei o meu discurso assim que Tate
saiu de meus braços com seus olhos molhados como os meus, sempre admirei isto
nele, a forma como as pequenas coisas significavam tanto para ele, lembro de
quando ele descobriu a gravidez de sua esposa, ele me ligou desesperado gritando
e chorando ao mesmo tempo, nem ele mesmo acreditou que seria pai. “Eu amo a
minha família e agradeço por tudo o que eu tenho todos os dias quando eu
levanto da cama, agradeço quando vou dormir e algumas vezes no meio do dia,
agradeço a Deus por eu ter vocês todos na minha vida”.
“Agora eu quem vai chorar”, disse Callie com a mão no rosto limpando
as lagrimas, Callie chegou aos sessenta e três antes que eu, mas é uma senhora
ativa que gosta de ir à academia, brincar com crianças e correr todas as
manhãs. Ela já tentou me levar para suas caminhadas pelos rochedos de Bogotá,
mas não deu muito certo.
Nos conhecemos quando completei vinte e três anos, a exatos quarenta. Ou
seja, aquele também era o aniversário da nossa amizade. Nádia era a mais nova
no grupo, na casa dos trinta e poucos – ela nunca revelou sua verdadeira idade
então está na casa dos trinta há uns dez anos – nos conhecemos em um museu de
arte moderna na Carolina do Norte, foi pura coincidência morarmos no mesmo
bairro na cidade de Bogotá, Colômbia. Agora Joshua é especial, tenho um carinho
enorme por ele, antes de construir sua família ele morou comigo e se tornou o
meu primeiro filho. Ele tinha uns dezenove anos quando nos conhecemos e a partir
daquele momento nunca mais saiu da minha vida.
Comecei a cortar e distribuir o bolo, os doces ficaram por conta de
Joshua que adorava crianças, tanto que teve trigêmeos na primeira gravidez de
sua esposa. Todos estavam sorridentes e falantes, meu marido contava sobre suas
aventuras quando ainda gostava de fazer trilhas e velejar em alto mar a procura
sossego e paz.
Já eu. Bom. Eu estava começando a ficar triste, não é aquela tristeza
que você se aprofunda em uma solidão, era uma tristeza comum de todos os meus
aniversários.
Não era muito tarde quando deixei a casa de meu filho para voltar para
a minha. Meu marido dirigiu o caminho contando sobre como Clarinha estava
inteligente – minha netinha – e falante. Fiquei pouco tempo com ela, mas eu
percebi que ela gostava de conversar e que era um pouco mais avançada do que as
outras crianças. Clara um dia poderá se formar em jornalismo ou advocacia já
que ela se defendeu da melhor forma quando acabou derrubando seu pedaço do
bolo.
Sorri olhando o horizonte pela janela do carro. Minha casa ficava
distante, uns sete quilômetros depois da pequena floresta ao sul, gostava
daquela tranquilidade. O ar era limpo e os pássaros cantavam pela manhã, estava
sempre escutando os pássaros cantarem, enquanto tomava café da manhã, enquanto
lia os meus livros ou enquanto pintava alguns quadros. Uma antiga paixão.
Meu marido gostava de ler, mas acabou perdendo o costume quando
conheceu os filmes baseados em livros e se tornou um verdadeiro cinéfilo.
Ele estacionou o carro na frente da garagem e eu desci do carro em
silencio, da mesma forma que fiquei durante toda a viagem de volta. Era bom
tê-lo, eu o amava. Mas em alguns dias eu precisava ficar sozinha, um dia como
este.
Entrei na casa abrindo o zíper do vestido cinza claro que eu usei
naquela noite. Ele me apertou durante o tempo todo.
Coloquei as chaves da casa em cima de um móvel de madeira e olhei para
o alto da escada, ele já estava subindo, provavelmente para o banheiro. Ele
assentiu com a cabeça quando percebeu que eu o observava e então desapareceu.
Caminhei até a cozinha e me servi um copo de água. Eu o tomei de uma só vez
olhando o meu reflexo no vidro da janela em cima da pia. Ainda sentia o vestido
apertando o meu corpo, tudo o que eu precisava era tira-lo, mas antes de subir
tinha de fazer algo. Deixei o copo dentro da cuba e caminhei até uma porta
cinza que tinha abaixo da escada, eu a abri girando a maçaneta e desci os
degraus até o porão, acendi a luz puxando uma cordinha no final da escada.
E lá estava ele, me encarando com seus olhos azuis de tinta a óleo.
O cabelo dele estava penteado para o lado, da forma que ele mais
odiava, seus lábios eram em um tom rosa claro, sua cabeça estava abaixada como
se ele estivesse encarando o chão, mas ainda assim me encarava. É uma imagem
confusa.
Me aproximei da tela à tinta óleo e deslizei a ponta de meus dedos em
sua superfície e foi como uma batida de carro, forte e violenta, as lembranças
me chicotearam fazendo minha pele arder como se estivesse sido empurrada em um
mar de fogo.
Todos os anos, naquela mesma data eu descia as escadas para o meu
encontro, era como um ritual. Um ritual doloroso.
Senti a mesma dor, a repugnante dor, o aperto no coração e não soube
fazer nada além de chorar ajoelhando-me perante a pintura.
Eu fechei os olhos e o vi, parado no meio do apartamento alugado nos
anos 70. Ele era alto e habilidoso com os movimentos das mãos enquanto
pincelava a tela cuidadosamente com um pincel fino detalhando o olhar de sua
obra.
Ele me olhou, eu estava deitada na cama cobrindo os seios com uma das
mãos enquanto posava para ele. Ele sorriu e deixou o pincel no suporte ao lado
da tela, ele se aproximou com seu andar ligeiro e se inclinou me beijando.
O toque de seus lábios fez com que minha pele se arrepiasse, ele
deslizava sua mão em meu braço esquerdo enquanto a outra acariciava minha nuca,
ele se colocou em cima do meu corpo e voltou a me beijar, com movimentos
delicados ele passava sua barba alta no meu pescoço fazendo-me cócegas. Ele mexia
sua cintura com movimentos diligente. Ele sussurrou nos meus ouvidos, e era
possível escuta-lo, cada palavra que ele disse, aquelas três palavras, silabas
curtas e cheias de sentimentos.
Abri os olhos voltando para o meu mundo, meu rosto estava marejado,
por mais que aquelas lembranças fossem boas, a dor ainda era insuportável.
Levantei sem apoio, encarei a pintura pela última vez antes de voltar
para cima pela escada longa de madeira.
Com um súbito susto vi meu marido à minha espera do outro lado da
porta.
“Você não está fazendo isso”, ele disse com clareza em suas palavras,
eu já sabia a que ele se referia, então limpei o rosto com as mãos e passei por
ele ignorando-o.
Ele inspirou fundo enquanto subia a escada para o quarto. Caminhei
pelo corredor olhando os milhares de retratos emolduradas nas paredes, eu tinha
uma família fez, mas não posso negar que era mais feliz antes de tudo aquilo.
Entrei no quarto e fechei a porta caminhando até a cama grande e
arrumada, sentei cruzando uma perna em cima da outra para tirar os sapatos e
foi como se sentisse seu toque.
Ele me descalçava quando chegávamos em casa, mas naquela noite que
minhas lembranças me levaram foi diferente de todas as outras.
Ele estava usando um terno e estava ajoelhado tirando meus sapatos sem
tirar seus olhos dos meus, aqueles olhos azuis como o céu. Ele beijou o peito
do meu pé e o colocou no chão com cuidado e carinho.
Tate era o homem mais carinhoso que eu já havia conhecido e isso, por
que estava com apenas 22 quando nos conhecemos, foi em um evento do meu pai,
Tate era o garçom da festa e ele me serviu uma taça de champanhe antes do
brinde de ano novo. Conversamos durante a noite toda sentados na sacada do meu
quarto observando as estrelas e descobri nele o que estava faltando em mim.
Ele me contou sobre suas aventuras náuticas e sobre sua família e eu
contei sobre o meu sonho de ser uma violinista. Contei sobre as vezes que me
apresentei em alguns eventos e sobre como acabei indo morar sozinha. Foi a
melhor noite até então, mas nenhuma noite se compararia com aquela. Ele segurou
o a minha mão e me levantou, me abraçando, Tate me rodopiou no quarto que havia
apenas uma cama de casal grande e uma cadeira de madeira no canto que em cima
estava uma vitrola gramofone, ele abaixou a agulha da vitrola e começou a tocar
ALWAYS AND FOREVER ele segurou na minha cintura e eu em seus
ombros, dançamos à musica toda e quando acabou a música ele me abraçou e
sussurrou aquelas três palavras. As três palavras que ele jurou falar apenas
para mim.
Tate se ajoelhou parando de dançar, lancei-me as mãos no
rosto surpresa demais para ter outra reação que não fosse aquela.
“Você quer se casar comigo?”. Ele perguntou segurando uma
aliança dourada com pequeno brilhante cintilante.
Assenti com a cabeça no mesmo momento, concordando enquanto
meus olhos marejavam-se de lagrimas.
Ele se levantou e colocou a aliança em meu dedo anular da mão
direita, eu o puxei abraçando-o e beijando-o com o rosto ainda molhado.
Por isso eu nunca esquecerei está música, este momento e ele.
Depois que ele beijou o peito do meu pé ele acariciou a minha
perna e se levantou tirando o terno, eu o observei, ele ainda vestia a camisa
branca e as abotoadoras que lhe dei de presente. Este não era o estilo de Tate,
ele era mais despojado.
Gostava de roupas largas e jaquetas de couro, seu armário de
roupas tinham apenas regatas, jeans e jaquetas. Ele usava botas de cano até os
tornozelos e era assim que ele gostava, mas para me agradar, naquela noite ele
se vestiu como um príncipe.
Tate se inclinou e me beijou na testa como um cavaleiro
escocês, eu o segurei com a mão na nuca puxando-o para cima de meu corpo e o
beijei astutamente.
Essas lembranças é o que me causa tormento, lembrar dessas
coisas me machuca a cada segundo que minha mente foge de mim.
Deixei meus sapatos caírem no chão e me deitei na cama
esperando não passar a noite toda com a imagem de Tate na minha cabeça. Até me
esqueci de tirar o vestido, me esqueci de tomar uma ducha para tirar a sujeira
da rua do corpo e me esqueci de que mais uma vez estava dormindo sozinha.
O texto aí mostra como a saudade as vezes pode machucar, doer ao relembrar das coisas que aconteceu na vida. Muitas vezes queremos fugir delas mas não conseguimos, o texto relata isso como as lembranças podem ser dolorosas, abraços.
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Que história linda e comovente! Deu pra sentir a tamanha dor de perder alguém, e por mais que passem os anos essa dor continua. Achei o texto bem metafórico, e podemos tirar várias interpretações através das brechas e sugestões. O ambiente está bem descrito, os personagens são bem desenhados... Adorei! parabéns pela escrita!
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Olá!
ResponderExcluir=)
As lembranças ao mesmo tempo em que nos leva a lugares confortáveis pode também nos machucar de uma forma insana. A saudade é dolorosa, embora também gostosa... um dos grandes desafios do ser humano é aprender a lidar com esse sentimento.
Ficou lindo o texto.
Diego, Blog Vida & Letras
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Oiiie,
ResponderExcluir*-* que história linda e realmente o texto mostra como a saudade pode nos machucar eu entendo, muita gente entende, Mas sobre a escrita ta de parabéns!!!
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Olá, tudo bem?
ResponderExcluirQue conto/história mais cheia de sentimentos e linda nos mínimos detalhes. Acho que as lembranças fazem parte de quem somos, são elas que nos alimentam quando não lembramos de mais nada, são elas que nos motivam. A saudade é um sentimento controverso, e sua história está linda, cheia de verdades. Parabéns!!
Beijos!
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O texto tá muito bem. Da vontade de saber o que aconteceu, quais foram os acontecimentos que separaram este casal. A vida é cheia de desencontros né.
ResponderExcluirMuito bom!