Em Minha Mente - Toque

Toque 5
A sala era branca com o assoalho de madeira escura, a mesma da sala de entrada que tinha visto há algumas horas. Havia um círculo formado por cadeiras com um grupo de jovens sentados olhando um para a cara do outro, entrei na sala e todos me encararam como se eu fosse uma refeição qualquer e eles estivessem famintos prontos para atacar. Felipe entrou logo atrás como um segurança que me acompanhava para qualquer que fosse o lugar, ele ficou do meu lado e apontou para a cadeira fazia que ficava ao lado de um garoto que poderia ter seus vinte e três anos, ele ficava balançando as pernas freneticamente, ele era alto e magro, a cintura fina deixava seus ombros ainda mais largos e seus braços fortes com algumas tatuagens. Ele era moreno, olhos escuros, lábios carnudos e o cabelo escuro penteado para trás. Caminhei envolta do círculo e me sentei ao seu lado, ele nem sequer me notou, parecia estar olhando para outro lugar, ele estava tão focado neste lugar que estava olhando que eu tentei procurar o que ele tanto fitava atentamente.
Ele encarava Felipe que estava parado na porta com um sorriso de canto nos lábios. Uma mulher surgiu na porta e ela o encarou de forma estranha o que fez com que ele saísse para fora da sala e ela fechasse a porta. Ela varreu a sala com seus olhos verdes como se estivesse caçando e então sorriu me surpreendendo com a forma rápida que ela mudava de humor.
– Bom dia, grupo, meu nome é Alba Marinho e sou responsável pelo grupo de vocês – ela deu um passo para frente e pegou uma cadeira no canto da sala que passou despercebida pelo os meus olhos como se tivesse aparecido magicamente naquele momento. Ela colocou a cadeira entre duas jovens, uma delas era Caroline que eu já havia conhecido mais cedo – já conheço todos aqui, mas temos dois novos colegas para conhecer e gostaria que vocês dois começassem a nossa conversa.
Era intimidador, de repente minhas pernas começaram a balançar para cima e para baixo em um movimento frenético, então varri o grupo novamente e meus olhos pararam no garoto que tinha o rosto coberto por uma faixa branca. Eu o encarei, apenas seus olhos, boca e uma pequena parte de seu nariz estavam a mostra, ele parecia estar mumificado e era estranho encara-lo sem dizer algo, sem poder perguntar o que lhe aconteceu. Não era tão estranho, era mais a minha curiosidade batendo na porta.
– James Campbel – começou ela fazendo minha atenção voltar em sua direção – podemos começar com você?
Todos os olhos foram direcionados para o garoto de rosto enfaixado. Ele abaixou a cabeça sem dizer nada.
– Meu nome é Charles Kennedith – meus olhos se perderam até olhar para o rapaz que estava sentado ao meu lado que tomou a frente de James chamando toda a atenção do grupo – estou aqui por que meu advogado mentiu para a promotoria.
–  Charles agora é a vez do James, espere chegar a sua vez – Alba tentou impedi-lo de continuar com seus olhos vibrando sob ele.
Tentou.
–  Eu fiz coisas – ele fechou os olhos como se estivesse lembrando de algo, mas logo abriu deixando as lagrimas caírem – fiz coisas das quais eu não lembro, mas todos me acusam – ele fez uma pausa e tentou parar o choro que continuava a escorrer de seus olhos escuros – eles me acusam, é a única coisa que eles sabem fazer, ninguém prova nada, eles apontam o dedo e dizem coisas, mas eu não me lembro, fecho os olhos e tudo o que vejo é minha pequenina nos meus braços, mas não sei o que aconteceu com ela – senti uma certa conexão com sua história – ela estava morta nos meus braços e eu chorava com o sangue dele pingando no piso branco do meu quarto. Ela ainda segurava um pedaço de chocolate em uma das mãos.
– Charles, você sabe que não foi culpa sua. Não precisa se lembrar desses coisas ruins – disse Alba querendo conter o sentimento que viria a seguir.
– Eu acho que eu matei a minha pequenina, eu acho que eu fiz isso, Alba – ele mordeu o lábio inferior olhando nos olhos de Alba que o fitava atenta como se ele fosse surtar a qualquer momento – diga para eles que eu fiz aquilo, eu tenho que pagar por ter tirado a vida dela. Conte a eles Alba, por favor, eu preciso pagar pelo o que eu fiz.
–  Celine – disse Alba e uma enfermeira alta e loira entrou na sala e caminhou na direção de Charles segurando ele nos braços de forma delicada e gentil – é melhor você descansar Charles.
Celine, a enfermeira, concordou com a cabeça e o guiou até a saída da sala, ele provavelmente seria levado para o quarto para um cochilo da tarde.
– Podemos começar com você James?
James levantou o rosto enfeixado e olhou para todos na sala.
Seus olhos estavam avermelhados e deixava o azul ainda mais marcante, como se ele tivesse acabado de chorar.
– Meu nome é James Campbel, tenho dezessete anos e sou de Ohio, minha mãe me colocou neste lugar de loucos por que ela acha que sou como vocês – Alba abriu a boca para falar alguma coisa, mas James lhe lançou um olhar de ódio interrompendo qualquer que seja sua fala – eu não matei ninguém, não tentei me matar, não me joguei na frente de um ônibus, não fiz nenhuma burrice, me feriram, fizeram isso comigo – seus lábios tremiam e sua fala era lenta de tom baixo – eu não acho que deveria estar aqui, ninguém sabe o que aconteceu comigo...
– Conte para nós – Alba o interrompeu.
– Você quer mesmo saber, Alba? – Ele perguntou encarando-a, mesmo sem resposta ele continuou – era quinta-feira, final do meu turno na farmácia que trabalhava com o meu tio, o adorado Mike, estava tarde e eu tinha feito três horas a mais para ajudá-lo com a contagem do estoque, olhei para o relógio e ele marcava onze horas, perguntei se podia ir, tinha de pegar o último ônibus, ele disse que me levaria embora de carro, era uma caminhonete preta com o capô vermelho que ele havia reformado. Fui até o estoque e apaguei a luz, meu tio chegou por trás e me abraçou, meu corpo se contraiu repugnando aquilo, mas ele disse algo antes de fazer o que estava prestes a acontecer, o que ele disse não me deixou mais calmo, mas também não me fez fugir. O que ele disse me paralisou dos pés à cabeça. Ele sussurrou em meus ouvidos ‘nós não vamos te machucar’. Ele colocou algo na minha cabeça, cobrindo ela, tampando minha visão, ele me empurrou no chão, me jogando como um feirante joga o saco de batava, senti oito ou mais mão tocando o meu corpo, senti eles tirando a minha roupa e dando risadas altas e assustadoras, senti o primeiro entrar dentro de mim com brutalidade quando um outro me virou de barriga para baixo e abriu as minhas pernas, eu chorei em silencio, sentindo tudo, sentindo o meu corpo morrer aos poucos, eu sabia que não iria morrer, eu sabia que eles não iriam me matar, mas eles podiam ter feito isso, escutei meu tio, o meu próprio tio dizer que estava quase lá, meu corpo ardia com o prazer deles, então eu desmaiei, não suportei a dor, foi mais forte que eu e por um instante eu estava morto. Quando acordei estava no chão do estoque, sem roupas, com um pouco de sangue nas minhas partes intimas e o chão sujo do que quer que seja aquilo, uma mistura escura e espessa. O cheiro era ruim como a dor que senti. Eu não consegui me defender, eu fui um fraco miserável. A primeira pessoa para quem liguei quando consegui alcançar meu celular foi para a minha mãe, implorei para ela me levar para o hospital, mas ela disse que não faria aquilo, contei para ela quem fez aquilo e ela disse que era mentira, disse que eu estava sozinho e que eu tinha fechado a farmácia, disse o meu tio, seu cunhado, estava em casa ás nove horas. Ela me limpou e me vestiu com umas roupas que trouxe no carro, ela disse que eu não deveria falar nada para ninguém e que se eu contasse ela diria que eu estava mentindo, ela diria que eu era louco e mentiroso.
Ele fez uma pausa e colocou a mão no rosto enfaixado chorando, ele sentia dor ainda e eu sabia disso. Alba se levantou e caminhou em sua direção ela se abaixou na frente dele e disse algumas coisas em voz baixa, eu não consegui ouvi-la.
O resto do grupo estava em silencio, alguns tinham deixado as lagrimas escorrerem e outro pareciam estar segurando-as com sua masculinidade. Havia um rapaz que ficava me encarando, ele possivelmente não havia prestado atenção no que James acabará de dizer por isso ficava me encarando com aqueles olhos escuros e sombrios.
– Eu vou continuar – disse James chamando minha atenção diretamente para ele novamente – parei de trabalhar na farmácia, mas isso não fez o que eu esperava, muito diferente, meu tio, o maravilho Mike passava mais tempo em casa, estava sempre perguntando por mim, até o dia que ele decidiu subir no meu quarto. Ele sentou na minha cama e falou que era um ótimo lugar para foder comigo de novo, com um movimento rápido ele me segurou nos braços, eu não sei o que aconteceu e nem da onde saiu toda aquela força, mas eu o joguei no chão com raiva e o chutei no rosto com toda a minha força, várias e várias vezes, eu não queria ser tocado, não queria que ele me tocasse. Quando me tiraram de perto dele eu lutei contra, dei um tapa no rosto da minha mãe quando ela tocou em mim, todos que me tocaram de alguma forma foram atingidos pela minha raiva. Meu pai foi o único que conseguiu me acalmar, ele não me tocou como os outros, ele me abraçou forte e de forma acolhedora. Ele pediu para eu me acalmar. Todos saíram do meu quarto, e eu contei o que aconteceu para o meu pai, escutei ele gritar com o meu tio na sala, então eu senti as mesmas coisas de novo, a dor aguda, as mãos passando pelo meu corpo e apertando minha pele, forçando uma entrada. Eu não consegui me controlar, eu estava me machucando.
James parou de falar e começou a passar uma das mãos atrás da cabeça, antes que alguém pudesse impedi-lo ele já estava tirando as ataduras de seu rosto. Aos poucos ele revelou a parte abaixo de seu nariz e depois acima dele. Fiquei horrorizado com o que eu estava olhando, ele tirou parte de seu rosto com sebe se lá o que.
– É por isso que estou aqui, afinal eu sou como todos vocês, fiz isso comigo mesmo por que não suportei sentir aquela dor, preferi sentir essa para esquecer da outra.
Seu rosto era totalmente cortado, pequenos cortes vermelhos que pareciam serem feitos por uma lamina fina, havia riscos longos e outros pequenos, mas todos eles pareciam ter sido feitos no frenesi do momento.
– Acredito na sua melhora, James, é muito bom poder falar sobre isso, desabafar sobre nossos sentimentos nos dá um certo alivio e nos tira um peso, as palavras machucam ainda mais quando somos nós mesmo que a falamos.
Alba se levantou e voltou para seu lugar ficando em pé, ela me olhou e depois seguiu seu olhar até o relógio de parede acima da porta.
– Vamos continuar nossa conversa na próxima reunião, estou ansiosa para conhece-lo, Enzo – ela sorriu fazendo o mesmo que fizera quando entrou na sala, aquele mesmo sorriso estranho.
Felipe surgiu na porta e eu me levantei para ir até ele, um rapaz ficou parado na minha frente me encarando nos olhos, ele não dizia nada, desviei meu olhar para Felipe que deu um passo à frente como se estivesse pronto para qualquer movimento indesejado que aquele rapaz pudesse fazer. Este ficou me fitando enquanto a sala se esvaziava. Minhas mãos ficaram frias e minhas pernas quase não me aguentavam de tão tremulas que estavam.
– Oi – disse o rapaz me surpreendendo com seu tom de voz menos intimidador do que sua aparência. Ele usava uma jaqueta de couro preta e jeans escuro, calçava um coturno preto e usava uma camiseta (provavelmente regata) branca por baixo da jaqueta de couro.
Felipe se aproximou rápido assim que o rapaz me cumprimentou.
– Vamos, está na hora do almoço – um outro dilema.
Era o meu primeiro dia ali e eu não sentia fome, estava ansioso, confesso, mas não sou o tipo de adolescente que desconta a ansiedade na comida, muito pelo contrário, não me lembrava nem da minha última refeição.
– Estou falando com ele – disse o rapaz fixando seus olhos nos de Felipe.
– Então vamos caminhar e conversar ao mesmo tempo – Felipe disse com autoridade e simpatia. Não conseguiria achar um tom de voz que parecesse com o dele, Felipe tinha um jeito calmo e delicado de dizer as palavras por mais que eu quisesse sair correndo de perto daquele rapaz de preto, vou chama-lo assim. Ou não.
O rapaz fez um gesto para que eu passasse pela porta e começou a caminhar ao meu lado pelo corredor, era estranho estar acompanhado, ou escoltado, pois todos se afastaram e disfarçaram seus olhares atentos enquanto caminhava ao lado dos dois.
– Seu nome é bonito – disse o rapaz e eu estranhei ele ter mencionado isso, não sei nem descrever o calafrio que percorreu pelo meu corpo quando entramos na sala com cinco jogos de mesas longas.
Todos os olhares pararam sob eu e logo de dispersaram. Se o meu problema fosse não ser notado já estava liberado para sair dali. Vi James sentado na ponta de uma das mesas. Não tinha ninguém perto dele.
– Meu nome é Leandro – continuou o rapaz que agora tem um nome, olhei para ele e sorri. Ele retribuiu com um sorriso largo e me deixou passar na frente para ir em direção as mesas.
Não havia nenhum lugar para se servir, olhei para os lados procurando por Felipe, mas ele não estava mais ali.
Mas Leandro estava e não tirava seus olhos de mim.
– Aonde quer se sentar? – Ele perguntou se colocando na minha frente como se fosse me devorar a qualquer momento – É o enfermeiro quem traz seu prato. O responsável por você e um médico faz seu cardápio semanal e o prato vem até a você pelo seu enfermeiro – ele explicou e senti um alívio.
Sorri para ele e ele sorriu levantando as sobrancelhas e mostrando suas pequenas covinhas nas bochechas. Ele não era tão assustador assim.
Comecei a caminhar entre duas mesas até o lugar aonde James estava sentado, olhei para ele e educadamente sorri, ele assentiu e com isso entendi que tudo bem eu sentar ao seu lado.
Foi o que fiz sentei ao seu lado, com uns quatro palmos de distância. Vi Felipe se aproximando com o meu prato ele o colocou sob a mesa e tirou a tampa metálica de cima do prato de louça branca. Ele colocou o garfo e a faca enrolados em um guardanapo de papel ao lado do prato e se sentou ao lado de Leandro que já estava acomodado bem na minha frente com seus olhos fixos nos meus quase me deixando desconfortável.
– Pode comer – disse Felipe com um sorriso amigável no rosto.
Olhei para a comida, era uma macarronada exatamente como minha mãe fazia nas quartas-feiras. Um dos meus pratos favoritos, desenrolei o garfo do guardanapo e o segurei na ponta dos dedos da mão esquerda.
– Dispensei meu enfermeiro – disse Leandro sem ninguém ter perguntado – ele ficava se insinuando para mim.
Achei aquela informação desnecessária, mas ignorei, pois estava em um outro dilema. O meu dilema.
E foi com um solavanco que meu corpo tentou expelir o que não havia em meu estomago para fora da minha boca. Engoli a seco e por instinto único de uma pessoa envergonhada, pois todos os olhos agora estava na minha direção, me levantei, em um certo momento encostei em James e foi ali que percebi que tinha cometido um erro.
James levantou enfurecido com seus olhos vermelhos e me empurrou com tudo no chão me jogando contra o piso. Ele parou com as mãos sob o rosto enfaixado como se não acreditasse no que havia feito.
Leandro foi mais rápido que minha queda e Felipe, assim que meu corpo tocou o assoalho de madeira escura ele estava do meu lado perguntado se estava tudo bem enquanto Felipe tentava acalmar James sem tocar nele.
Eu sentei no chão com a ânsia ainda batendo na porta, ficava escutado James se desculpar aos prantos e Felipe pedindo para ele se afastar.
– Eu não queria fazer isso – ele repetia inúmeras vezes.
Leandro segurou minha mão e me ajudou a se levantar. A enfermeira de James se aproximou com passos rápidos pedindo para que todos se acalmassem. Ela conseguiu fazer com que James saísse do refeitório e isso fez com que Felipe me encarasse apavorado como se estivesse perguntando a si mesmo o que foi que havia acontecido.

A tontura bateu mais forte que a ânsia e meu corpo se desmontou nos braços de Leandro assim que minha visão escureceu.

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