Em Minha Mente - Deteriorado

Deteriorado 2
Fechei o livro Inabalável que estava lendo e me levantei da cadeira atrás da mesa da sala da biblioteca municipal. Peguei meu copo grande de café descafeinado e caminhei até o balcão. A bibliotecária de uns vinte e sete anos me encarou antes de esticar o braço empurrando com a ponta dos dedos uma ficha com o meu nome para que eu assinasse minha saída.
Ir para a biblioteca depois da aula era o que mais me salvava, gostava de ler títulos de autoajuda e romances e por isso ia à biblioteca depois do colégio, o que também dava tempo da minha mãe conseguir sai do trabalho.
Peguei a caneta presa a um fio de metal e assinei a ficha de saída. Meu estomago ronronou de fome, fazia um tempo desde minha última refeição e mesmo que não conseguisse comer ainda sentia a fome dentro de mim. E cada vez ficava pior, me sentia fraco e tonto, uma vez cai no corredor da escola com a pressão baixa, ninguém se aproximou para me ajudar, apenas me deixaram ali esperando que eu apenas me levantasse.
E como sempre, cai e sozinho levantei.
Caminhei até a porta de saída e de longe vi minha mãe dentro do carro com as mãos parada no volante pronta para buzinar. Assim que ela me viu desistiu do feito e me encarou enquanto caminhava em direção ao carro. Dei a volta no veículo e entrei no lado do passageiro. Ela não disse nenhuma palavra, e eu não ajudei no diálogo.
Fiquei em silencio enquanto ela acerava o carro na Military Avenue sentido a minha casa, mas ela fez um caminho diferente virando e entrando do Drive In do Mc Donald. Ela falou seu pedido e em seguida escolheu o que eu deveria comer acompanhado de fritas e bacon.
Meu estomago embrulhou com o cheiro ao redor, respirei fundo tentando manter o controle da situação, não queria fazer o que estava prestes a acontecer, mas antes de tomar uma terceira lufada de ar minha respiração parou, meu abdome contraiu e minha cabeça se esticou para fora da janela aberta do carro, o liquido gástrico foi ejetado para fora do meu corpo no mesmo momento que minha mãe gritou assustada. Minha barriga doeu e ela me puxou um pouco para trás abrindo a porta e me empurrando de volta para a mesma posição que estava, mais uma contração e acabei vomitando o que já não havia em meu estomago.
Minha mãe em dizer uma palavra me entregou um lenço de papel úmido e com aroma de talco infantil. Sentei encostando as costas no banco e limpei minha boca com gosto amargo na língua.
Fechei os olhos, não estava suportando o olhar desaprovador que minha mãe estava lançando na minha direção. Ela se esticou e fechou a porta com uma batida forte e desnecessária como se estivesse descontando toda sua raiva no carro.
Ela foi um pouco para frente com o carro e pegou seu pedido das mãos de uma mulher uniformizada. Jogou o lanche no banco de trás e acelerou como se estivesse tentando fugir de algo que a perseguia com curvas ligeiras e nada confortáveis para quem acabara de ter uma crise de vomito.
Ela quase parou o carro dentro da sala de casa, mas freou antes e desceu me deixando dentro do veículo sozinho com a minha raiva e vergonha.
Comecei a chorar, não sei porque. Apenas comecei a chorar encostando a cabeça no painel preto, meu estomago ainda doía e sentia que a qualquer momento poderia voltar a vomitar novamente.
Respirei fundo e passei a mão no rosto limpando as lagrimas indesejadas. Abri a porta do carro e a fechei assim que sai. Dei a volta nele e vi que a embalagem do Mc Donald ainda estava lá dentro no banco de trás. Entrei em casa e subi a escada correndo o mais rápido que pude.
Minha mãe não me entende, ela não entende meus sentimentos, meus medos, raiva. Ela nem tenta entender apenas tem seus ataques de raiva e acaba jogando a primeira coisa que vê pela frente. Desta vez foi o seu almoço, mas dias atrás ela arremessou um copo de vidro na parede da cozinha.
Bati a porta do meu quarto por que não consegui para-la antes de cair na cama e chorar mais um pouco.
Era incrível como a única coisa que eu conseguia fazer era chorar e estragar o dia dela.

Acordei quando o sol já havia indo embora e a lua tomou seu lugar. Sentei na cama e abri meu notebook olhando o feed do Facebook, rolei a página e vi umas fotos de alguns garotos da escola que estava em uma lanchonete, eles estavam sorrindo nas fotos mostrando sua felicidade diretamente para mim.
Não posso dizer que estava feliz com a minha vida atual, muitas coisas estavam acontecendo na minha vida e eram muitos sentimentos como já mencionei.
E mesmo que folheasse todas aquelas fotos dos meus colegas de classe sorrindo com suas namoradas e amigos podia jurar que todos eles estavam mentindo.
É mais fácil mentir dizendo que está bem. Eu mesmo fiz isso quando meu pai morreu e venho fazendo até hoje, mentindo para eu mesmo dizendo que estou cada vez melhor, a mentira mais dissimulada que já contei na vida.
Fechei o notebook e levantei da cama, sai do quarto em silencio, escutei minha mãe assistindo na sala e desci a escada, a luz estava acesa iluminando apenas a cozinha. Ela se virou e me encarou.
– Você está melhor, Enzo? – Ela perguntou voltando a olhar a televisão que exibia sua série de medicina favorita.
– Sim – respondi caminhando até a cozinha, peguei um copo no armário e abri a geladeira servindo agua no copo. Aquela foi a nossa única conversa do dia. Voltei para o quarto e deitei na cama. Abri o notebook e comecei a assistir a um filme na Netflix.
Passei a noite toda acordado, e quando percebi o relógio ao lado da cama estava fazendo barulho em cima do criado-mudo. Meu corpo despertou-se em um automático instantâneo, minhas pernas me levaram para o banheiro que ficava em uma porta a direita do armário de roupas. Entrei e me encarei na frente do espelho. Meus olhos estavam fundos e cansados, meu pescoço doía e minha cabeça parecia que ia explodir.
Eu não sei se aguento mais este dia, pensei comigo mesmo e meu reflexo me encarou com os olhos mortos e a boca rachada e pálida. Meu reflexo era um defunto dentro de um caixão com rosas vermelhas, eram as minhas flores favoritas.
Ignorei o meu futuro próximo e comecei a me despir deixando as roupas penduradas em um suporte preso a parede. Abri a ducha e deixei a agua morta esquentar meu corpo.
Peguei o sabonete em um outro suporte e comecei a passa-lo em meu corpo com movimentos leves e circulares. Meus dedos eram finos e longos como finas salsichas. Me enxaguo e pego uma toalha ao lado das minhas roupas.
Quando seco volto para o quarto e abro meu armário encarando as poucas peças de roupa que tinha. Sou um jovem que não gosta muito de cor em tecidos, não sei exatamente o porquê deste meu gosto, mas minhas roupas eram baseadas em camisetas lisas em tons de azul, preto e branco. Sem estampas. Minhas cuecas eram as mesmas coisas. Bermudas jeans e calças no mesmo tom de jeans escuro.
Peguei qualquer calça e uma camiseta azul. Na gaveta peguei uma cueca branca e a vesti, depois vestia calça jeans e a camiseta. Espinhei o desodorante nas axilas, o sem cheiro mesmo, sou alérgico. Peguei uma meia cinza e a calcei. Um tênis preto com detalhes em cinza claro e o calcei. Estava pronto. Passei o pente rapidamente no cabelo penteando os fios médios para trás como se estivesse pendendo-os em um rabo de cavalo, caminhei até a janela e vi minha mãe entrar no carro ainda com sua roupa de caminhada matinal em tons de neon.
Peguei um livro de literatura e abri a porta do quarto, neste momento meu coração acelerou como se fosse saltar de meu peito. Meu pai estava parado na minha frente com a mesma expressão que meu reflexo me encarou. Meus lábios tremeram antes de eu dar um passo para trás, um súbito passo assustado. Cai tropeçando em meu próprio pé e no mesmo momento o corpo de meu pai se jogou sobre mim.
Eu gritei, gritei alto, gritei sentindo o corpo pesado em cima do meu, um corpo pesado e gelado.
– Lorenzo – disse minha mãe segurando meus braços tirando-me de meu pesadelo. Abri os olhos assustado, olhei ao meu redor e me apoiei sentando meu corpo no chão próximo a porta aberta.
Comecei a chorar, minha mãe se lançou contra meu corpo me abraçando forte como nunca antes havia feito, nem mesmo quando meu pai faleceu. Estava enlouquecendo. Estava começando a ver as coisas. Mas esqueci de contar que já havia acontecido isso outras vezes então você talvez, depois desta observação, me encare como um louco.
– Aconteceu de novo? – Perguntou minha mãe ainda me abraçando, balancei a cabeça dizendo que sim e ela me apertou ainda mais contra seu corpo – Acho melhor você não ir ao colégio hoje, pode ficar em casa.
– Não – eu a afastei limpando as lagrimas de meu rosto, mesmo ainda soluçando – não posso ficar aqui. Não posso mais voltar aqui, mãe.
– Tudo bem, vamos então – ela se levantou e caminhou pelo corredor – não demore estou esperando você no carro – disse ela enquanto descia a escada.
No caminho de casa até a escada ela não falou nada. O carro ficou em silencio ou quase isso se não fosse pelo barulho do motor. Mas mesmo que estivesse calado minha mente estava trabalhando a mil por hora.
Mil pensamentos negativos por segundo. Minha mente estava me crucificando de cabeça para baixo com pensamento do tipo: você é muito idiota, um maluco, psicopata idiota, se enganar assim, pensar que está vendo o pai morto, só um idiota como você pode fazer isso.
E isso ficava se repetindo sem parar até mesmo quando entrei na sala da primeira aula no Benicia High School e me sentei na segunda carteira da terceira fileira encarando a lousa branca com alguns rabiscos em vermelho da aula de geometria.
Lili sentou na carteira de trás e não disse nenhuma palavra quando passou por mim. Éramos melhores amigos, conversávamos com todos os dias e compartilhávamos segredos íntimos, em um certo momento até pensei estar apaixonado por ela, mas acabei me descobrindo de uma forma diferente quando conheci Miguel. Então mesmo com todos os meus problemas mentais eu ainda sou gay dentro de um cofre de aço. Miguel ainda me cumprimentava nos corredores e na rua, mas não passava disso, nós já nos beijamos algumas vezes e não passou disto. E então tudo mudou.
Agora me sinto tão sozinho e quebrável. Me sinto fraco e frágil como se realmente fosse possível alguém me quebrar em mil pedaços com apenas uma palavra. Então me peguei pensando me Miguel e deixei de lado o fato de eu ter sido ignorado por Lili.
Miguel estava sentado no fundo da sala com seus novos amigos do time de futebol. Eles davam risada alta como se estivessem assistindo a um espetáculo em um circo. Olhei para ele por alguns segundos e ele percebeu dando uma piscadela de olho rápida e disfarçada. Sua sexualidade também era um segredo tão guardando quanto o meu.
Voltei a encarar a lousa branca, ainda havia uma salvação, ainda existia algo mesmo que em segredo entre eu e Miguel. Ele ainda sabe que eu existo diferente...
Meus pensamentos foram interrompidos quando Lili me cutucou com sua unha no meu ombro. Virei olhando para ela que deu um breve sorrisinho.
– Hey – ela sorriu novamente e se inclinou para frente – fiquei sabendo que você não estava bem ontem, aconteceu alguma coisa?
Como Lili estava sabendo? Simples, a mãe dela trabalha na maternidade do hospital em que minha mãe chefia e as duas são amigas há mais tempo que eu e Lili.
– Nada demais. Ainda estou um pouco abalado. Não sei – não deveria ter dito isso – Mas não é nada que deva se preocupar.
Eu queria dizer a verdade, estava precisando tirar os pensamentos ruins da minha cabeça e precisava me distrair em uma conversa que não fosse entre eu e minha mente ardilosa. Mas ela parecia tão distraída, percebi isso, ela não queria falar comigo estava apenas curiosa ou sendo educada como todos os outros fizeram nas primeiras semanas depois da minha perda.
Então não estava tão confiante assim. E mais uma vez minha mente me trapaceou com seus pensamentos ruins. Você deveria morrer, nem seus amigos se importam com você, sua mãe não se importa com você. O menino que você ama é o único, mas logo ele vai perceber o que você é de verdade. Você deveria morrer, você deveria enfiar uma faca no seu peito e sangrar até a morte.
Não consegui suportar esses pensamentos, a primeira coisa que me lembrei foi a imagem de meu pai, meu querido pai sangrando no chão da cozinha. Levantei da cadeira com os olhos expulsando as lagrimas sem pestanejar e corri para fora. Corri o mais rápido que eu consegui, passei direto pelo meu armário e depois pela saída. O coração martelava em meu peito acelerado, parei de correr quando cheguei no estacionamento.
Apoiei minhas mãos em meus joelhos e puxei o máximo de ar para os meus pulmões que pediam por isso.
– Enzo – gritou Lili.
Olhei para trás e lá estava ela, parada ao lado da portaria e logo atrás dela Miguel parava de correr.
 Eu ainda chorava mesmo sem perceber, soluçava colocando a mão no rosto envergonhado de Miguel me ver naquele estado emocional.
Já havia me rendido, não sentia mais nada. Não havia nada que pudesse tirar todas as ideias suicidas que passavam pela minha cabeça.
– Todos te acham um idiota, Lorenzo – Lili começou a gritar alto caminhando em minha direção – e você quer ser esse idiota, quer ser esse imbecil fracassado que você se tornou. E daí que ele morreu, você está vivo e deve viver.
– Você não entende – eu consegui dizer entre as lagrimas.
– Vamos voltar, Enzo – Disse Miguel estendendo a mão parando ao lado de Lili.
– Isso se você quiser, se não quiser voltar lá e encarar o que te deixa assim você será sempre esse idiota, esse garoto fraco que não conseguiu superar a morte do pai. Ele nem era isso tudo, quantas vezes você chorou no meu quarto falando dele. Isso é remorso por você ter sido gay a vida toda e ter guardado esse segredo do seu pai.
E então eu corri. Corri sem direção e eu quis fazer aqui. Eu quis morrer, quis fazer. Implorei pela morte no mesmo segundo que um carro me atropelou, Miguel e Lili gritou, meu corpo estralou e girou no ar.

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