Aquele que partiu - Última vez

Última vez

Estava determinada, então eu não disse nada quando acordei naquela manhã. Tomei uma ducha fria, sentindo calafrios enquanto a água tocava a minha pele. Eu estava com os olhos fechados tentando não pensar em nada, mas era impossível. Era impossível fugir daquela lembrança.
Eu me vi chorando no chão do banheiro, de joelhos no chão, as mãos apertando uma a outra, o rosto molhado, o rímel borrado no rosto todo, já não havia batom em meus lábios. Meu cabelo estava todo bagunçado e eu usava apenas uma camiseta grande que cobria o meu corpo todo, tudo o que eu queria era sentir o seu cheiro, nem que fosse por apenas alguns segundos.
Nem que fosse apenas naquele momento.
Eu finalmente tinha feito, eu finalmente passei pelo o que eu desejei nunca ter passado.
E enquanto a agua fria emanava da ducha sob o meu corpo era como se ainda eu estive lá. Caminhando em direção a lapide cinzenta, as letras em maiúsculas escreviam o seu nome e a nossa frase talhada no mármore cinza.

Era 01 de novembro de 1977, uma terça-feira chuvosa, nós já estávamos casados há quase três meses, eu estava feliz com o meu novo emprego como secretaria e ele estava quase finalizando sua obra de arte, ele dizia que aquele seria o seu mais valioso trabalho.
E ele tinha razão, o quadro no qual estava trabalhando há semanas tinha uma essência diferente de todos os seus trabalhos, ele usava apenas a tinta preta e isso se realçava na tela branca. Com a ponta do pincel ele desenhava duas linhas extremamente retas e apenas em seu final ele fazia uma curva perfeita.
Ele estava tão concentrado. Eu estava com a roupa de sempre, usava uma camiseta cinza escura, a mesma que ele usou na noite anterior quando fomos a uma taberna.
Tate me olhou e sorriu, ele assentiu e eu sorri. Estava pintando algo especial, ou tentando fazer isso, pois minha tela ainda estava em branco e eu já havia molhado as células do meu pincel fino sete vezes na tinta preta, eu nem sabia o porquê tinha escolhido aquela cor. Normalmente quando começava a criar algo novo eu sabia exatamente o que iria pintar, era como se esta coisa, está visão já existisse na minha cabeça.

Abri os olhos e fechei a ducha, passei as mãos nos meus fios cinza tirando o excesso de água e peguei a toalha estendida no suporte ao lado do box. Me enrolei nela depois de secar. Caminhei até o quarto passando pelo closet, Diogo estava sentado na cama, ele me encarou por alguns segundos e sorriu.
“Você conseguiu”, ele disse orgulhoso, “Estou feliz que tenha conseguido, é um bom feito, mesmo depois de quarenta anos”.
“Preciso fazer uma coisa, preciso ir a um último lugar”, ele assentiu e eu caminhei de volta para o closet ficando de frente aos cabides de vestidos
Escutei ele se aproximar com seus passos lentos e me virei encarando-o.
“Para aonde vamos?”. Ele perguntou se aproximando um pouco mais.
“Eu preciso fazer isto sozinha”, ele assentiu concordando com a minha escolha, “Prometo que será a última vez”.
“Use o tempo que precisar”.

“Use o tempo que precisar”, disse Diogo parado no início do corredor de lapides no cemitério.
A lapide que estávamos procurando ficava no final daquele corredor, lembro de estar ali há alguns anos, mas também lembro de não ter conseguido seguir em frente com um plano falho de me despedir. Então fiquei ali encarando todas aquelas pessoas presentes no funeral do meu amor.
Mas agora era diferente, eu estava preparada e tinha convicção de que eu precisava fazer aquilo.
Meu marido segurou a minha mão e assentiu com um apoio silencioso.
Com passos lentos entrei no corredor de lapides, meu coração estava querendo sair do meu corpo, minhas pernas formigavam e minhas mãos suavam frio. Eu não sabia exatamente o que estava sentindo, parecia medo com uma mistura estranha de felicidade.
De qualquer forma eu precisava fazer aquilo. Caminhei olhando para todos as lapides, olhando os nomes escritos em mármore e pedra. Estava quase perto do limite no cemitério quando li o nome dele.
“Tate Faust”.
Meus olhos se encheram-se de lagrimas e minhas pernas cederam fazendo-me cair de joelhos na grama verde. Logo em seguida meu marido segurou meus ombros repetindo inúmeras vezes que estava tudo bem.
“Vai ficar tudo bem”.
Eu assentia concordando, mesmo que não acreditasse naquelas palavras sem sentido. De certa forma já estava feito.
De joelhos eu me aproximei um pouco mais da lapide e a abracei sentindo a frieza em meu corpo.
Eu não te esqueci, Tate. Eu pensei.
“Eu lembro do dia em que nos casamos, eu ainda tenho o meu vestido guardado em algum lugar”, sussurrei enquanto as lagrimas ainda escorriam pelo meu rosto. “Lembro das palavras que você disse em seus votos, eu ainda falo sobre você pelos quatro cantos da casa”. Olhei para Diogo que estava perto o suficiente para poder ouvir e fechei os olhos. “Eu comprei o nosso pequeno apartamento, Tate, não precisamos nos preocupar em pagar o aluguel. Todos os seus desenhos ainda estão lá, eu emoldurei todos eles para que o tempo não o deteriorasse”. Eu escutei Diogo se afastar e continuei ainda de olhos fechados, “eu vou lá quando me sinto sozinha, eu sinto a sua presença e choro”, abri os olhos limpando o meu rosto molhado, “você nem imagina o quando está sendo difícil, Tate. Mas preciso fazer isso, não tenho outra solução”.

Segurava o pincel de ponta preta olhando atentamente para a minha tela branca, Tate me fitou algumas vezes, ele estava quase acabando sua pintura, ele disse que aquele quadro nos tiraria do sufoco das contas e que poderíamos pagar o aluguel de seis meses adiantado.
“Eu não acredito que você ainda não pintou nada, faço um risco na tela e veja o que sai”. Ele disse sem tirar os olhos de sua obra.
“É que eu ainda não sei o que pintar”.
“Deixa que eu te ajudo”, Tate saiu de perto da sua tela e se aproximou de mim.
Ele segurou minha mão e com o meu pincel ele fez dois riscos em preto na tela.
Aquilo me deixou furiosa, ele voltou para sua obra e eu o olhei enfurecida, me aproximei e peguei um pote de tinta vermelha, joguei a tinta fazendo-a respingar por toda a tela.
Ele me encarou com seus olhos como se fosse me lançar chamas, Tate empurrou e naquele momento eu me arrependi da besteira que fiz.
Ele andou até seu violão e o pegou, pegou sua jaqueta preta e a chave de seu Mustang. Ele saiu do pequeno apartamento e bateu a porta com força. Eu gritei implorando para que ele me desculpasse.
Mas não sei se foi possível ele me ouvir. Cori até a janela e o procurei lá embaixo, eu o vi entrar em seu Mustang depois de jogar suas coisas no banco de trás, ele acelerou o carro até eu o perder de vista.

Estava usando preto quando entrei no carro, dispensei o motorista que se ofereceu para me levar aonde quer que eu fosse. Fazia um tempo que eu não dirigia sozinha, mas eu precisava fazer, então entrei no carro e coloquei o cinto. Eu o liguei e mudei a macha, acelerei em direção ao meu destino.
As lembranças daquele caminho fizerem a minha cabeça encher de vozes. O meu pai falando que o médico disse que ele caiu de um desfiladeiro, minha mãe concordando e dizendo que ele não sofreu, e o médico me entregando a grinalda em ele segurava quando foi encontrado morto.
Foi um soco no rosto, não tinha nem mais lagrimas para chorar. Vinte minutos depois eu parei o carro de frente a uma cerca, do outro lado do penhasco era possível ver a cidade banhada pela cor do pôr-do-sol.
Sai do carro e fechei a porta, caminhei até a cerca de madeira, fechei meus olhos esperando acontecer o que havia acontecido há alguns anos.
E aconteceu.
Eu estava sentindo ele, sentia o seu cheiro de perto, olhei para frente e coloquei minhas mãos na cerca, aquela era a última vez que eu iria naquele lugar, estava preparada para evitar algumas lembranças, estava preparada a fingir que eu o esqueci.
Apenas fingir, eu sei que nunca esquecerei ele, seu toque, seu beijo, seu carinho, sua voz. Eu sei que eu nunca esquecerei a forma como ele me olhava e me tratava.
Eu sei que nunca esquecei o nosso casamento, nossas brigas, nossos risos e nossos momentos um ao lado do outro.
Sei que não vou esquecer das vezes que ele tocou música com o seu violão, mesmo cantando com a sua voz rouca, não vou esquecer das nossas idas ao parque de diversão e nem daquela vez que ele fez um almoço para eu conhecer melhor Joshua.
Eram tantas lembranças, dois anos conhecendo uma pessoa, passamos um pouco mais de dois anos juntos e aquele tempo parecia ter sido uma vida toda.
“Adeus, Tate Faust”, eu disse me despedindo da forma que deveria ter feito há tempos atrás.
Então eu senti o seu toque, na minha mão direita, era mesmo o seu toque, o mesmo toque que senti quando ele colocou a aliança em meu dedo.
E eu escutei aquelas três palavras, em um tom alto e claro, as três palavras que só escutei de sua boca, escutei tantas vezes que até decorei, ele falava de forma lenta e ao mesmo tempo sexy. O seu tom de voz era alto e rouco.
“Eu te amo”.
Ele disse em meus ouvidos e eu não o senti mais.
Voltei para o carro em busca de seguir com a minha vida, prometi que não deixaria aquelas lembranças me abalarem mais, prometi que nunca o esqueceria e prometi que em meus últimos dias de vida eu ainda o amaria.


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